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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Parabéns, Sérgio Godinho

Charneca em flor, 31.08.20

Sérgio Godinho é mais conhecido como músico mas, se prestarmos atenção às suas letras, descobrimos poemas fantásticos. Para assinalar o seu 75° aniversário, partilho aqui a letra da sua mais recente canção.

Este "O novo normal" é tristemente actual

No novo normal
Há cidades inteiras
Por onde rasgaram
Invisíveis poeiras
Malignas benignas
Ninguém sabe se sabe
Nem que acaso ou que destino nos cabe
O novo normal
É terreno minado
De acasos
No novo normal
Caem corpos à sorte
Em valas comuns
Num silêncio de morte
Cortado somente
Por soluços distantes
Longe vão os tempos de ser como dantes
No novo normal
Nunca nada vai ser
Nunca igual

Dadas as circunstâncias
Mantenha as distâncias
Respeite os espaços
Controle essas ânsias
De beijos e abraços
Refreie as audácias e as inobservâncias

Escolha bem as audácias
Refreie essas ânsias
De beijos e abraços
Dadas as circunstâncias
Respeite os espaços

No novo normal
Nunca são contas feitas
Acordaste informado
E ignorante te deitas
E amanhã pela manhã
Será que algo mudou
(tudo) não passou de um pesadelo fugaz
Uma história do medo
Largada ao ouvido
Em segredo

No novo normal
Há grandes filas de fome
Nomes tão desgastados
Até deixar de ter nome
Até que o medo não tenha
Racionais fundamentos
E seja só um buraco negro no céu
Um horizonte de eventos
Memorial do que
Se viveu

Dadas as circunstâncias
Mantenha as distâncias
Respeite os espaços
Controle essas ânsias
De beijos e abraços
Refreie as audácias e as inobservâncias

Escolha bem as audácias
Refreie essas ânsias
De beijos e abraços
Dadas as circunstâncias
Respeite os espaços

Manual para mulheres de limpeza, Lucia Berlin

Charneca em flor, 30.08.20

manual-para-mulheres-de-limpeza.jpgHá uns anos, num dia de aniversário, senti-me atraída pelo magnetismo deste olhar de Lucia Berlin e foi inevitável comprar este "Manual para mulheres de limpeza". Depois deixei-o na prateleira até agora. Até porque o livro tem mais de 500 páginas por isso quando ia pegar nele, assustava-me e desistia.

No entanto, ouvi, num podcast, alguém a falar desta obra e resolvi dar-lhe uma oportunidade. Afinal tinha uma pérola, ou melhor, um colar de pequenas pérolas na prateleira e não sabia. Como se trata de um livro de contos lê-se muito bem e nem se repara no tamanho. 

Lucia Berlin era uma escritora norte-americana que nasceu no Alasca em 1936 e faleceu em 2004. Embora tenha publicado inúmeros contos ao longo da vida, só recentemente é que teve o devido reconhecimento dos leitores e da crítica.

A autora teve uma vida cheia e tumultuosa. E foi precisamente na sua vida que se inspirou para escrever os seus contos que abordam alguns dos aspectos mais duros da natureza humana. Embora Lucia também escreva sobre o amor e sobre as emoções, debruça-se sobre o alcoolismo, a toxicodependência ou a violência. Mesmo quando as situações são dramáticas, Lucia consegue introduzir uma nota de humor ainda que subtil mas utiliza uma linguagem muito acessível. As histórias de Lucia são tão bem escritas que se tornam tão vívidas, mas tão terra-a-terra ao mesmo tempo, que nos sentimos envolvidos nas situações quase como se também fôssemos uma das personagens. 

Resumindo, "Manual para mulheres de limpeza" é uma colectânea de contos de qualidade literária notável e que vale muito a pena ler.

"Nunca vi os corvos a deixarem a árvore de manhã, mas todas as noites, cerca de meia hora antes de anoitecer, começam a acorrer vindos de todos os pontos da cidade. Pode ser que haja alguns pastores que paira  às voltas no céu, a chamarem outros ao longo de quarteirões, para que venham para casa, ou talvez cada um deles reúna elementos atrasados antes de se esconderem na árvore. Tenho-os observado bastante, seria de pensar que, nesta altura, já soubesse dizer. Mas só vejo corvos, dezenas de corvos, a voarem vindos de longe e de todas as direcções e cinco ou seis a sobrevoar em círculos como no aeroporto O'Hare, a crocitar e crocitar, e, depois, numa fracção de segundo, tudo fica silencioso e não se vê corvo algum. A árvore parece um acér comum. Ninguém diria que há tantos pássaros lá dentro."

Manual de sobrevivência de um escritor, João Tordo

Charneca em flor, 28.08.20

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O subtítulo deste livro, o pouco que sei sobre aquilo que faço, diz muito sobre aquilo que eu acho que norteou o autor durante a escrita desta obra. Poderia pensar-se que escrever uma espécie de manual para aspirantes a escritores seria uma sobranceria do João Tordo mas eu senti mais como um exercício de humildade do que como a exaltação do seu talento. 

João Tordo parte da sua vida e das suas características pessoais para explicar a dedicação, o esforço e a entrega que são necessários para se chegar a ser escritor. Para além disso, o autor fala da importância de ler muito e refere alguns dos livros que o influenciaram e que foram preponderantes para que ele enveredasse pelo caminho da escrita. Na sua descrição do ofício da escrita também utiliza palavras de outros escritores tornando este livro, igualmente, num manual de leitura.

No que me diz respeito, este livro fez-me perceber que nunca escreverei um livro. Sim, em tempos sonhei com isso mas já desconfiava que não tinha aquilo que é preciso para tal empreitada. Com esta leitura, tive a certeza daquilo que já tinha intuído. No entanto, sei que este livro fará de mim melhor leitora. Não é por perceber aquilo que está por trás de um livro que ele perde a  magia. Saber como é difícil e duro ser escritor faz-me valorizar ainda mais aquilo que tenho nas mãos quando pego num livro.

Esta obra trouxe-me um novo problema, fiquei com vontade de ler mais obras de João Tordo. Só li os 3 primeiros livros que publicou, "O livro dos homens sem luz", "As três vidas" e "O bom Inverno". Já tenho pouco espaço para acomodar mais livros. 

Quanto ao "Manual de sobrevivência de um escritor", acho que vou voltar a ele, de vez em quando. Talvez um dia volte a ter vontade de ser escritora*.

"Portanto, tu queres ser escritor.

Dentro de ti habitam as vozes. É questão de lhes dares ouvidos. Por vezes, elas surgem de maneira fortíssima e eficaz, tão poderosas que não tens outro remédio senão encher a página em branco."

"Neste sentido, os bons romances aliam a arte à técnica. Vão abaixo da superfície das coisas, mergulham mais fundo do que os princípios, conceitos ou estruturas em que estão assentes. Porém, tal como na música jazz, convém saber os acordes antes de improvisar. Daí que ler como escritor, tendo uma noção mínima da construção narrativa, seja tão importante. Retira algum prazer inocente à leitura, é certo, mas ensina-nos muitíssimo sobre a forma. Sem forma (que a técnica ajuda a construir), a prosa permanece, de facto, privada: pode estar repleta de boas ideias e de excelentes palavras, mas não comunica com eficiência."

 

*"Faz a ti próprio esta pergunta à maneira de Rilke: Preciso de escrever? E, caso a resposta seja positiva e sincera, então podes chamar a ti próprio 《escritor》, mesmo que nada tenhas publicado."

 

 

Resposta à resposta

Charneca em flor, 27.08.20

A Ana respondeu à minha primeira quadra do seu desafio.

Aqui a sua quadra de resposta

Tenência é uma aldeia bela
lá p'rós lados do Guadiana
alegra-me que tenha nela
encontrado a flor-de-diana

Assim não me resta outro remédio senão responder-lhe à letra .


Para acompanhar a Ana
É preciso imaginação
Estou longe do Guadiana
Deixei lá a inspiração.

Uma quadra para a Ana

Charneca em flor, 26.08.20

A Ana de Deus, exímia criadora de desafios, teve a gentileza de me desafiar a escrever uma quadra por dia. O desafio começou ontem mas já era muito tarde quando dei por isso. Sendo assim começo hoje. Inspirei-me no meu fim de semana no Algarve e foi isto que aconteceu

 

Percorri a longa estrada
Em busca da minha essência
Encontrei-a na luz da alvorada
Ali naquela aldeia, Tenência

 

Vou tentar participar todos os dias, não sei se com uma quadra, efectivamente, mas com um  texto poético.

 

 

 

 

 

 

"O Retorno" Dulce Maria Cardoso

Charneca em flor, 03.08.20

RETORNO.jpg

Já tenho mencionado que leio poucos livros de autoras portuguesas. Tinha alguma curiosidade em ler Dulce Maria Cardoso porque gosto muito das crónicas que ela escreve para a revista Visão. Este livro foi, realmente, uma boa aposta para me iniciar na obra desta escritora e para despertar em mim a vontade de ler mais livros dela. "O Retorno" transporta-nos para 1975, para um momento da nossa História com o qual a maioria dos portugueses ainda não se reconciliou, na minha opinião. Refiro-me ao regresso daqueles a quem se convencionou chamar "retornados".

A própria autora passou por essa experiência uma vez que, embora tenha nascido em Trás-os-Montes, foi para Angola com 6 meses de vida e também voltou em 1975.

Imagino que Dulce Maria Cardoso tenha partido das suas memórias, e também de alguma investigação presumo, para construir esta narrativa. A figura central da história é Rui, um adolescente de 15 anos que se vê na contingência de vir para a "metrópole" com a família. Tal como milhares de portugueses, Rui e a família não têm para onde ir e acabam por ficar a viver num hotel de 5 estrelas no Estoril. Acompanhamos os últimos momentos de Rui em Angola, o aeroporto antes de embarcarem para Lisboa, a chegada ao hotel e toda a experiência da vida nesse ambiente repleto de pessoas na mesma situação. A autora consegue fazer-nos sentir, através das suas palavras, todas as dificuldades que estas pessoas sentiram. Eram olhadas como estrangeiras no seu próprio país. É uma história dura e difícil de lidar. No entanto acho que, devido a tudo o que temos vivido nos últimos tempos, escolhi o momento ideal para ler este romance. Fez-me olhar de outra forma para o racismo latente na nossa sociedade. O que se vive hoje tem, provavelmente, raízes neste passado recente.

Para além do interesse no tema central d' "O Retorno", a escrita de Dulce Maria Cardoso é brilhante. A maneira como ela escreve um diálogo é muito curiosa. Não utiliza uma única vez os sinais de pontuação típicos dos diálogos mas conseguimos perceber, sempre, que se trata de uma conversa. Também gostei muito da utilização de alguns termos angolanos que eu desconhecia.  Estas palavras tornam o texto ainda mais rico. Aliás sempre achei que as particularidades de cada povo falante de Língua Portuguesa é que a tornam interessante. Muito mais do que a implementação de um qualquer acordo ortográfico.

"E eu tenho tanto medo. Não quero ter medo mas tenho. Se o pai não chega até ao dia da independência é porque não chega mais, é porque não chega mais, é porque está, porque está morto. Ouviste. Sejas tu quem fores desta vez é a sério, não é como os jogos que fazia antes. Se o pai não chega até ao dia da independência mataste o pai, se o pai não chega até ao dia da independência é porque quiseste mandar os cabrões dos pretos matar o pai. Sejas tu quem fores, tens de me ouvir, não estou a brincar. Não me vais deixar à espera para sempre."