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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Passa Palavra #cartas

Charneca em flor, 30.10.20

Cartas do passado

Leninha sentia-se entediada. As férias escolares iam a meio e ela já tinha feito todos os trabalhos escolares e lido os livros que tinha trazido da biblioteca. A televisão não tinha grande interesse. Afinal viviam-se os idos anos 80 e só havia 2 canais disponíveis para optar. As redes sociais ainda não tinham sido inventadas. A internet já existia mas a sua utilização não era tão vulgarizada como hoje. A jovem não sabia que mais inventar para se entreter.

Olhando em volta, surgiu-lhe a ideia de explorar um velho armário onde a mãe guardava algumas relíquias do passado. Embora sabendo que a mãe não gostava que se mexesse naquilo que tinha ali guardado, Leninha resolveu arriscar porque achava ser capaz de dissimular a sua aventura exploratória. Abriu a gaveta e ficou encantada por encontrar as suas roupinhas de bebé. Só que, bem lá no fundo, fez uma descoberta surpreendente . A sua mãe era muito arrumada e por isso Leninha olhou, com estranheza, para o que acabara de encontrar. Nada tinha a ver com o restante conteúdo da gaveta.

Nas suas mãos estavam vários maços de cartas, cuidadosamente atados com fitas de cetim. Pelos carimbos dos envelopes, percebeu que as missivas datavam do início da década de 70. A maioria das cartas eram aquelas que os pais trocaram enquanto namorados mas também encontrou cartas enviadas por outros familiares.
Leninha sentia-se dividida sobre o que fazer com aquele achado. Quase que podia ouvir, dentro da sua cabeça, a contenda entre o anjo bom e o anjo do mal. Por um lado, sabia que devia respeitar a privacidade da sua família, principalmente a dos seus pais. De certeza que não se sentiria confortável se se deparasse com juras de amor trocadas entre os pais. Por outro lado, a curiosidade estava quase a dominá-la. As cartas escaldavam nas suas mãos. Apresentava-se-lhe a oportunidade de descobrir o segredo de família que os adultos escondiam há anos. Há muito que desconfiava que se passara algo de muito grave para que não se dessem com a tia Conceição. Às vezes, dava-se conta de conversas murmuradas entre os pais, os tios ou os avós mas nunca conseguira perceber qual tinha sido o drama que conduzira ao corte de relações.

De repente resolveu-se, abriu o primeiro envelope e começou a ler.

No fim, quisera esquecer o que lera tal era a gravidade. Tinha sido preferível ter continuado ignorante.

 

A Mel e a Mula voltaram a desafiar a blogosfera com mais uma palavra, Cartas. Foi inspiradora.

Passa Palavra #almofada

Charneca em flor, 25.10.20

Taras e Manias

Olho o relógio com ansiedade. Ainda falta tanto para o dia de trabalho terminar. Enquanto executo tarefas rotineiras, sonho com o momento em que me vou sentar no sofá e recostar nas minhas almofadas mais fofas.
Sempre gostei de almofadas. Quando ainda vivia na casa dos meus pais, tentei convencer a minha mãe de que precisava de um monte delas na minha cama para conseguir dormir. Só que ela não era grande apreciadora. Acedeu a que a minha cama tivesse 4 almofadas. Embora não fosse o suficiente para eu me atirar para cima delas como se me atirasse para uma nuvem de algodão doce, já era melhor que nada.
Quando eu comecei a conceber a decoração da minha casa, as almofadas foram das primeiras aquisições. Seja no sofá, na cama ou nas costas das cadeiras, há almofadas por todo o lado. Até existe um almofadão para me deitar na varanda. Sou completamente viciada. São grandes, pequenas, de várias cores e feitios, lisas ou com padrões. Se estiver em boa companhia, são os instrumentos ideais para uma boa luta. Se estou sozinha, posso agarrar-me a elas para descansar melhor. Quando estou feliz, servem para me encostar enquanto sonho com acontecimentos futuros ainda mais felizes. Em momentos de tristeza, são o amparo para as minhas lágrimas. Nas indecisões, a almofada em que deito a cabeça para dormir é a melhor conselheira. Eu sei que isto é um lugar comum mas é a verdade mais verdadeira. Deito-me sem saber o que fazer e ao acordar já tenho a decisão tomada.
A minha família e os meus amigos nem sempre compreendem esta minha mania. A minha mãe acha que estes objectos só servem para acumular pó. Os meus amigos queixam-se de que têm pouco espaço para se sentarem. Desconfio que eles acham que eu não sou muito boa da cabeça por causa desta mania. Afinal, cada um tem as suas pancadas. A minha tara são as almofadas. Isto não prejudicam ninguém, até é uma tara bem fofinha e confortável. Só é pena não ter uma almofada financeira maior. Dava-me mesmo jeito… para comprar mais almofadas.

 

Com algum atraso, aqui fica o meu contributo para o #passa-palavra da Mel e da Mula.

História da Menina Perdida, Elena Ferrante

Charneca em flor, 23.10.20

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Já foi em 2016 que encontrei esta brilhante saga escrita pela misteriosa Elena Ferrante. Depois de me ter apaixonado pela história de Lina e Lenú, apressei-me a encomendar os restantes livros da tetralogia. Li os primeiros 3 livros de forma quase sequencial mas este "História da Menina Perdida" estava guardado como uma preciosidade em que não se quer tocar. Calhou pegar nele, agora. 

Através dos 4 volumes acompanhamos o crescimento e o desenrolar da amizade entre Lina e Lenú. A maneira como estão escritos faz com que pareça que estamos dentro desta história em vez de sermos meros espectadores. A escrita de Elena Ferrante é tão envolvente e cativante que dei por mim a ler até altas horas da madrugada o que já não me acontecia há muito tempo. 

Neste livro acompanhamos, em grande parte, a vida adulta das 2 mulheres e o seu caminho em direcção ao fim da vida. A amizade entre Lenú e Lina continua a ser determinante nas suas vidas embora haja sempre um conflito entre aquilo que Lenú conseguiu, enquanto escritora com algum sucesso, e aquilo que Lina poderia ter sido se tivesse aproveitado a sua inteligência inata. Percebemos como a vida pode ser surpreendente por bons e maus motivos e como um momento dramático modifica a vida das pessoas para sempre. 

Como pano de fundo ainda podemos observar ambiente político e social italiano e um pequeno vislumbre do crime organizado napolitano.

Elena Ferrante, em cada livro, transporta-nos para a Itália de uma maneira tão real que nos sentimos a calcorrear as ruas empedradas das cidades onde a história se vai desenrolando com principal relevo para a cidade de Nápoles. 

Elena Ferrante nunca se quis dar a conhecer porque diz que os livros falam por ela. Acredito que isso seja real e imagino, sempre, que Elena Greco é um pouco daquilo que Elena Ferrante será. Presumo que seja napolitana porque só isso explica que fale da sua cidade com tamanha paixão.

"Eu própria não consigo acreditar. Terminei esta história que me parecia que nunca mais terminava. Terminei-a e reli-a pacientemente, não tanto para melhorar a qualidade da escrita, como para verificar se pelo menos numa ou noutra linha era possível encontrar a prova de que Lila entrara no meu texto e resolvera dar o seu contributo para a sua redação. Mas tive de concluir que todas estas páginas são só minhas. Aquilo que Lila tantas vezes ameaçou que faria - entrar no meu computador -, não o fez, talvez nem fosse capaz de o fazer, foi uma longa fantasia minha de senhora idosa que nada percebo de redes, cabos, ligações, trasgos eletrónicos. Lila não faz parte destas palavras. Só aqui está aquilo que eu fui capaz de fixar. A não ser que, de tanto imaginar as coisas que ela teria escrito, e como, eu já não seja capaz de distinguir o que é meu e o que é dela."

Passa-palavra #vento

Charneca em flor, 16.10.20

Vento Nocturno

É noite e estou sozinha. Não consigo adormecer.
Um medo irracional invade-me enquanto oiço o vento a uivar lá fora. Já há muito que o vento desencadeia em mim, um pânico inexplicável. Obviamente que eu sei que o vento é fenómeno natural e até consigo perceber quais são as condições atmosféricas que desencadeiam as tempestades de vento. Só que conhecer a teoria científica não me deixa mais descansada, antes pelo contrário.
Nestas noites recordo-me de um filme que me marcou muito. Não sei se era um filme de terror mas a verdade é que me assustou-me muito. Ainda me arrepio quando me lembro das cenas em que o vento agitava as folhas das árvores como prenúncio de uma desgraça iminente. Com o vento que sopra lá fora temo que também me aconteça algo de terrível.
O plátano que existe junto à minha janela abana tanto que chega a bater no vidro. Ai, meu Deus, que a janela ainda se vai partir.
O meu coração bate aceleradamente. De repente, a campainha toca e eu assusto-me com o meu próprio grito. Não me consigo mexer. Eu não vou abri, nem pensar. A campainha volta a tocar desta feita de modo muito mais insistente.

 

Só nessa altura é que eu acordo e me dou conta do sítio onde estou. Estou na farmácia e é noite de serviço. Eu adormeci e estava a ter um pesadelo. Quase que tropeço ao levantar-me para atender o utente que volta a tocar desalmadamente.
Chego ao postigo de atendimento com dois tomates maduros no lugar das bochechas. Peço desculpa pela demora, carregada de vergonha, e tento compensar o utente executando o atendimento com rapidez e competência.
Finalmente volto a recostar-me no sofá. Olho pela janela, para a escura madrugada. Não existe nenhum plátano junto à janela. A fantasia e a realidade confundem-se na minha cabeça. Fecho os olhos para descansar mais um pouco. Ainda faltam algumas horas para terminar o meu turno.
O vento volta a uivar lá fora. Eu abro os olhos alarmada. Será que não foi um pesadelo?!

 

Mais uma participação no desafio #passa-palavra da Mula e da Mel.

O desafio das 7 palavras

Charneca em flor, 10.10.20

A Ana de Deus lançou mais um desafio como já vai sendo hábito. Desta feita, convidou os seus leitores e amigos blogosféricos para escolherem 7 palavras entre os dias 1 e 7 de Outubro.

As minhas palavras foram estas:

  1. Amizade
  2. Trabalho
  3. Natureza
  4. Alquimia
  5. Passeio
  6. Plantas
  7. Amor

O critério para escolher estas palavras teve a ver com algo que marcou cada um dos meus dias.

Com estes vocábulos, foi proposto escrever um texto em que fossem utilizadas.

Cá está o meu contributo


O meu trabalho é um dos aspectos fundamentais da minha vida. A minha profissão faz-me muito feliz e tento exercer as minhas funções com competência mas também com amizade pelos colegas e pelos utentes da farmácia. Mas só isso não é suficiente para eu viver a vida em plenitude. Recentemente descobri a alegria que as plantas são capazes de gerar. O contacto com a natureza me enriquece por isso não prescindo de um passeio pelo campo, na companhia do meu amor. Assim o trabalho, a natureza e o amor constituem a alquimia perfeita que me conduz pelo caminho da felicidade.

 

Passa-palavra #lápis

Charneca em flor, 09.10.20

Eu, o lápis de cor*

 

Portugal, Verão de 1980


Eu sou um lápis de cor e vivo numa caixa metálica com lápis de muitas outras cores. Ao todo somos trinta e seis. Todos nós viemos de um país distante, do outro lado do mar, na bagagem de um menino rechonchudo. Ele viveu durante um ano noutro país e, regressando, trouxe na sua mala, muitos brinquedos diferentes daqueles que existem cá em Portugal. Os seus amigos ficam deliciados com todos os brinquedos e livros que o menino tem agora. Mas nenhum ficou tão fascinado com os lápis de cor como a menina de totós que aparece por cá quase todos os dias. A pequenita nem tem grande jeito para o desenho mas agora quer utilizar a caixa de lápis de cor todas as vezes que aqui está. O primo, o meu legítimo proprietário, bem tenta propor outros divertimentos mas a pirralha nem lhe liga. Só fica feliz se a deixarem usar os lápis de cor.
A menina nunca tinha visto tantos tons diferentes disponíveis para colorir os seus desenhos toscos. Por aquilo que a ouvi dizer, a sua mãe, até ali, só lhe tinha comprado caixas bem mais pequenas. Os pais da menina diziam, muitas vezes, que não havia dinheiro para tudo. Só se podia comprar o que era mesmo necessário. Ela nem sempre compreendia porque é que não podia ter tudo o que lhe apetecia.
Os desenhos que os meninos fazem são todos muito parecidos. O meu dono vai ter uma casa nova e é esse o tema preferido. Nas folhas brancas aparece a casa com a sua varanda e as suas janelas. E árvores e pessoas a passear. A menina dos totós desenha sempre pessoas mas eu desconfio que isso tem um segundo sentido. Quem disse que uma menina de seis anos não pode ter intenções obscuras? Eu tenho a certeza que a minha cor é a preferida da menina. Ela escolhe-me sempre a mim. Todos os seus desenhos têm uma pincelada minha. Eu sei que a pequena pirralha gosta de todas as cores mas tem um carinho especial por mim. A minha cor é de um tom bege rosado mas a menina diz que eu sou um lápis cor de pele. Pelo menos, um lápis da cor da sua pele clarinha. Mas na caixa há lápis para pintar a cor de muitas outras peles porque todas as cores são importantes.

 

E o desafio #Passa-palavra da Mula e da Mel continua .

 

*baseado em factos verídicos.

 

 

Passa-Palavra #saudade

Charneca em flor, 02.10.20

Para esta semana, concebi uma reflexão sobre essa palavra tão portuguesa, Saudade proposta pela Mula e pela Mel (M&M)

Reflexões em dó maior

Não sei o que é isto que sinto cá dentro. Será uma dor? Um vazio? Um buraco negro? Sinto que me falta sempre qualquer coisa mesmo nos momentos felizes. De vez em quando, relembrando instantes passados, o vazio aumenta, o buraco torna-se ainda mais negro e as melodias soam mais tristes.
Na minha memória surgem, como personagens num filme, todas as pessoas que conheci e que desapareceram da minha vida. Ou porque morreram ou porque a vida nos afastou irremediavelmente. Ao mesmo tempo que me fico feliz quando me lembro de histórias bonitas que vivemos, abre-se a ferida da ausência.
Às vezes também sinto falta daquilo que não vivi, daquilo que nunca aconteceu por maior que fosse o meu querer. Será possível?
Nunca mais consegui preencher este espaço que ocupa a minha alma. Por mais amor que ali derrame, nunca fica a transbordar.
Todos os dias me levanto e me deito com esta companhia. Sim, a saudade é a minha melhor amiga porque nunca me abandonou.