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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

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O presente difícil de encontrar

Os Desafios da Abelha | Conto de Natal de 2021

Charneca em flor, 30.11.21

Nos dias anteriores, a cidade tinha sido afectada por um enorme nevão. Na televisão, as autoridades de segurança mostravam-se muito preocupadas com a segurança rodoviária. Só que a véspera de Natal chegara e as pessoas queriam fazer as compras de última hora, como era costume. Nada as fazia ficar em casa, nem sequer a neve.

Os limpa-neves trabalhavam sem descanso mas, assim que acabavam de limpar uma estrada, ela voltava a ficar coberta de neve. Mesmo assim, os parques de estacionamento da superfícies comerciais apresentavam-se quase cheios. Apesar das péssimas condições atmosféricas, as pessoas arriscavam fazendo deslocações, nem que tivessem que estar horas numa fila de trânsito. Tudo valia a pena para salvar o Natal.

Contra todas as adversidades, havia alguém que se deslocava, freneticamente, de centro comercial em centro comercial, de loja em loja. Os engarrafamentos não o preocupavam. Aquele senhor, bonacheirão, vestido de vermelho, deslocava-se num trenó. Mas não era um trenó qualquer, era puxado pela experiente Rena Rudolfo. Não havia engarrafamento, cruzamento, semáforo ou rotunda que a parasse porque Rudolfo se deslocava pelo céu, não voando que isso deixava para os pássaros, mas pulando de nuvem em nuvem. Na noite mais mágica do ano, era vê-los, Pai Natal e Rudolfo, saltitando pelos céus.

Só que, naquele ano, o Pai Natal começou a ser avistado muito antes de a noite cair. Um menino tinha-lhe escrito uma carta muito comovente mas tinha-o colocado perante uma situação complicada. O pedido não se conseguia satisfazer na fábrica de brinquedos do Pólo Norte. Sendo assim, o Pai Natal andava, tal e qual o mais comum dos mortais, a tentar comprar aquilo que o menino, João de seu nome, tanto ansiava. Na sua busca infrutífera foi estacionando em vários locais surpreendendo os incautos transeuntes embora a maioria pensasse que se tratava de uma mera estratégia de marketing.

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O céu estava a escurecer porque o dia ia chegando ao fim e o Pai Natal não resolvia a sua questão. Até que teve a ideia de ir consultar um colega que também costumava trabalhar nesta época do ano, o Menino Jesus. Com a ajuda da sua fiel Rena Rudolfo, foi até ao Paraíso expôr o seu problema. Depois de ser muito bem recebido, contou a situação o mais depressa que conseguiu. O Menino Jesus riu-se com gosto dizendo:

- Querido amigo, como é que é possível que um homem com a tua experiência esteja a fazer um problema tão grande dessa situação?! Procura bem dentro de ti, no coração, que vais encontrar a solução. Até te vou dar uma ajuda. – E deu-lhe uma caixa vazia enquanto se despedia uma vez que não havia tempo a perder. Era chegada a hora de levar os presentes a todas as casas do mundo.

O Pai Natal compreendeu tudo, finalmente. E, de nuvem em nuvem, lá foi saltitando e deixando presentes em todos os lares, dos mais humildes aos mais ricos.

Na manhã de Natal, a neve continuava a cair lá fora. Na grande casa que se erguia no cimo da colina, inúmeras crianças saíam dos seus quartos e desciam as escadas, com grande algazarra, até à árvore de Natal da sala comum. No orfanato do Menino Jesus, nenhuma criança ficava sem presente mas os olhos que mais brilhavam eram os do João porque a sua prenda era a mais reluzente. No momento em que se preparava para abri-la, soou a campainha.

- Vem, João, os teus pais chegaram para te levar. Vais passar o dia de Natal com a tua nova família.

Da caixa entreaberta espalhou-se no ar o doce aroma do amor. O desejo do pequeno João tinha sido realizado. O presente que pediu ao Pai Natal foi apenas este, Amor.

 

Este pequeno conto, inspirado na imagem que o ilustra, foi escrito no âmbito do desafio lançado pela Ana de Deus, inspirado na iniciativa anual da Mãe Natal dos Blogs do Sapo, imsilva.

Esquinas, Dino d' Santiago e Slow J

Charneca em flor, 29.11.21

Dino d'Santiago nasceu na Quarteira, filho de pais cabo-verdianos. Começou a cantar, ainda na infância, no coro da igreja uma vez que pertence a uma família profundamente católica. Nos anos 90, tomou contacto com o Hip Hop, começou a colaborar com rappers quarteirenses e a compôr. Mais tarde participou na Operação Triunfo e trabalhou com alguns dos mais conhecidos artistas da área do Hip Hop, do R&B e Soul como, por exemplo, Virgul, Expensive Soul ou Sam the Kid.

Já lançou vários discos a solo e foi premiado variadíssimas vezes, quer a solo quer quando fazia parte de bandas. 

As suas raízes cabo-verdianas, o seu contacto com vários músicos e estilos musicais, as reflexões que fez sobre a sociedade em que vivemos ou a História de Portugal, intimamente interligada com a História de África, conduziram ao brilhante trabalho que lançou na passada semana, "Badiú".

Gosto muito da sonoridade das suas músicas que têm vindo a ficar cada vez mais ousadas no que diz respeito às letras.

Assim escolhi esta "Esquinas" para dizer que gosto muito do Dino d'Santiago

Espero que gostem.

Boa semana 

Visita de Estudo, António Zambujo

Charneca em flor, 22.11.21

Esta música já não bem nova porque está integrada no disco de António Zambujo, "Voz e Violão" que saiu no passado mês de Abril mas o vídeo é tão bonito que eu tinha que o partilhar.

Acresce que a letra desta canção foi escrita pela brilhante Maria do Rosário Pedreira. Numa canção deveríamos dar igual importância ao intérprete, ao compositor e ao letrista. Só a união do esforço de todos é que consegue construir uma boa canção. Regra geral, atribui-se o êxito ao intérprete mas sem os outros intervenientes, incluindo os técnicos ainda mais esquecidos que os autores, nada seria possível.

Eu gosto sempre de saber quem contribuiu para as músicas. Vou sempre espreitar a ficha técnica, curta no Spotity mas mais desenvolvida no Youtube.

 

Margarida Espantada, Rodrigo Guedes de Carvalho

Versão Audiobook

Charneca em flor, 21.11.21

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"Margarida Espantada" foi a minha primeira experiência de ficção com audiobook. Já tinha recorrido a este meio mas para não-ficção já que ouvi um livro/documentário sobre várias gerações de emigrantes portugueses em França. Acresce a particularidade de "Margarida Espantada" ser lida pelo autor, Rodrigo Guedes de Carvalho. Provavelmente devido à sua longa experiência como pivô do Jornal da Noite da SIC, Rodrigo Guedes de Carvalho tem um excelente dicção e lê com o dinamismo inerente à sua história.

O livro debruça-se pela história de uma família abastada portuguesa constituída pelos pais e 4 irmãos. Embora pudesse parecer que aquela família nunca teria problemas, a sua existência acaba por ser muitíssimo atribulada pontuado por acontecimentos trágicos. O autor aproveita esta história para abordar, de forma brilhante, temas de grande actualidade como a doença mental, a dependência e a violência doméstica. O enredo está bem concebido e as personagens foram muito bem construídas.

Um pormenor que me chamou a atenção foi o facto de cada personagem ser designada por 2 nomes próprios, Margarida Rosa, Joana Ofélia, António Carlos ou Aida Vanda são alguns dos exemplos. Para mim, este pormenor significa que cada personagem, tal como cada pessoa, têm 2 lados, o que mostram aos outros e o que guardam para si. Achei esta opção muito curiosa.

Há, no entanto, alguns aspectos de que não gostei tanto mas que, talvez, tenham a ver com o facto de ter ouvido o texto em vez de o ter lido. Por um lado, o facto de o autor/narrador repetir o título do livro sempre que iniciava um novo capítulo. Na verdade isso irritou-me um pouco e distraía-me no início do capítulo. Por outro lado, e embora algumas passagens sejam quase poéticas, acho que o autor utilizou, num ou noutro capítulo, vernáculo em exagero. Para mim não havia necessidade porque é perfeitamente possível descrever o horror e o drama sem recorrer a essa subterfúgio de linguagem. Até acredito que isso me incomodou mais por estar a ouvir em vez de ler como já disse.

Seja como fôr, este foi o meu primeiro contacto com a escrita deste autor e talvez experimente ler outros livros. Em relação aos audiobooks, a experiência também será para repetir embora não haja muitas opções em português. Uma das hipóteses seria "Cem Anos de Solidão" de Gabriel Garcia Márquez que é narrado, precisamente, por Rodrigo Guedes de Carvalho.

"Margarida Rosa decidiu logo em pequena que nada nesta vida lhe causaria dano.
Há crianças assim, muito do seu tempo é passado a desenhar planos para o que lá vem. Não é bom nem mau. Não adianta dizermos a estas crianças

- Não te rales agora com isso, tens muito tempo
porque elas não fazem caso e mesmo que fizessem não significa
que conseguissem parar.
E o que deve acontecer com os vícios, que muita gente liga às vidas adultas, gastas e desiludidas, quando na verdade talvez comecem muito cedo, essas aflições com certos pensamentos e exigências absurdas do corpo.

Margarida Rosa pôs-se a imaginar o mundo antes de realmente o conhecer. Ainda a vida se limitava a casa, escola, outra vez para casa, e em casa subia e descia escadas, sempre a cirandar desde que aprendeu a andar, sempre indecisa entre o quarto lá em cima e o jardim grande lá em baixo. A mãe percebeu cedo que a filha gostaria sempre mais de saborear trajectos do que chegar a um destino."

Centenário de José Saramago

Charneca em flor, 16.11.21

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Estátua de José Saramago na sua terra natal

Azinhaga (Golegã)

2017

 

Daqui a um ano assinala-se o centenário do nascimento de José Saramago. Hoje iniciam-se as comemorações com esta Sessão de Abertura no Teatro de São Luiz:

"A escritora Irene Vallejo lerá um Manifesto pela Leitura, seguindo-se um concerto pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida pelo maestro Pedro Neves. O programa é composto por As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, de Joseph Haydn, com leitura de textos de José Saramago pela atriz Suzana Borges."

Ao longo deste ano, as iniciativas serão inúmeras seja através da Fundação José Saramago mas também através de outras instituições. Nos próximos meses, serão reeditadas algumas obras, a leitura dos livros nas escolas será estimulada e também haverá reuniões académicas sobre o tema quer em Portugal quer no estrangeiro. No site da Fundação poder-se-á encontrar mais pormenores sobre as comemorações.

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Eu descobri José Saramago já tarde uma vez que li o meu primeiro livro de Saramago há cerca de 10 anos. Nessa altura, uma pessoa que já tinha lido os livros quase todos emprestou-me "A Jangada de Pedra" e "As intermitências da morte". Fiquei fascinada e muito arrependida por não ter lido mais cedo. Desde essa época para cá já li mais alguns como podem ver aqui.

Sendo assim resolvi encetar a minha própria comemoração e estas são as iniciativas que pretendo realizar:

- Ler mais livros de José Saramago

- Ler os autores, e respectivos livros, que já venceram  o Prémio de Literatura José Saramago*, excepto aqueles que já conheço. Tinha esse projecto quando vi a série "Herdeiros de Saramago" mas como aderi a um clube de leitura acabei por não o realizar.

E, desse lado, há fãs ou curiosos com a obra de José Saramago? Como pretendem assinalar esta efeméride?

P.S. - Pelo que estou a ouvir na reportagem na TSF, a estátua já não está no mesmo local onde estava quando eu estive na Azinhaga. 

 

*Este ano, os responsáveis optaram por não atribuir o prémio uma vez a edição de livros foi reduzida devido à pandemia.

 

Se não me amas, Elisa

Charneca em flor, 15.11.21

Elisa era uma quase desconhecida do grande público quando ganhou o Festival da Canção em 2020. Por culpa da pandemia, acabou por não ir à Eurovisão uma vez que o certame não se realizou no ano passado.

Elisa é madeirense, dona de uma voz cristalina e uma presença luminosa. Em todas as suas interpretações fica patente a entrega que põe em cada canção. Na semana que passou lançou o seu primeiro álbum com 12 canções. A jovem participou na composição da maioria das músicas, quer a nível da letra quer da música, tornando o seu álbum ainda mais pessoal.

No entanto, o single que marca o lançamento do álbum tem como autora Luísa Sobral, uma artista com reconhecido valor. 

Esta feliz união resultou nesta maravilha 

Boa semana.

 

Desafio Arte e Inspiração #9

Mentes perturbadas

Charneca em flor, 10.11.21

João não tinha muitos amigos. Sempre fora um miúdo estranho. O amor extremo que a mãe lhe devotava nunca a deixou perceber que o seu filho não era igual às outras crianças. Aos seus olhos, o seu filho era perfeito. Durante muitos anos, esperara por ele que só chegara quando já não contavam que pudesse acontecer.

Quando João nasceu, os pais já estavam casados há 15 anos. Aquela criança era a realização de um sonho. De tão imaginado e desejado, João tornara-se num menino da mamã. O pai, pessoa introvertida, colocara-se sempre à margem do seu crescimento. Não é que não o amasse, mas não conseguia penetrar naquela simbiose perfeita entre mãe e filho. Também ele jamais suspeitara que algo no interior da mente do seu filho não funcionava da maneira que seria expectável.

Os anos foram passando e o João foi crescendo sem sair muito debaixo da asa da mãe. Na escola ficava sempre sentado perto da professora e nunca saía para o recreio. A interacção com as crianças da sua idade era mínima. Na verdade, João era incapaz de olhar os outros nos olhos e pouco falava. No entanto, era o aluno que tinha os melhores resultados desde que não fosse preciso falar com ninguém. A mãe, quando interpelada pela professora, conseguia arranjar sempre justificações. Obviamente, que ela já tinha reparado que João tinha muita dificuldade em olhá-la de frente. Aliás, às vezes até achava que o seu filho ficava de olhar vazio, perdido nos caminhos tortuosos da sua mente. Só que, para si, a natureza do seu filho era assim, calado e tímido, e a ela restava-lhe aceitá-lo e amá-lo.

Nada preparara aqueles pais para aquilo que estava por vir. Certa noite, acordaram com um estranho barulho que vinha do telhado. Com o medo a dominá-los, avançaram pelo corredor em direcção à porta. Não se aperceberam que o filho não estava na cama. Com cautela, saíram para o pátio descobrindo que o filho se equilibrava em cima do telhado enquanto gritava palavras incompreensíveis.

A mãe começou a chorar compulsivamente porque já estava a imaginar o filho morto no chão do pátio.

- João, o que estás aí a fazer? Como é que foste aí parar? – o pai, embora assustado, tentava manter-se calmo.

- Pai, ajuda-me. Eu preciso de chegar ali a cima.

- Ali, onde?

- Ao céu. Tenho que ajudar aquele cabelo.

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Cabelo perseguido por dois planetas, Joan Miró

 

- Mas que cabelo? Do que estás a falar? Não é melhor saíres daí? Eu vou ter contigo para te tirar daí.

- Não. – o grito de João foi lancinante. – Eu tenho que ajudar o pobre cabelo. Não vês aqueles dois planetas? Estão a persegui-lo, coitadinho.

Efectivamente, no céu observava-se um fio de luz, rasto de algum avião, mas o pai não estava a compreender nada do que o filho dizia.

O barulho acordara os vizinhos e alguém tomara a iniciativa de ligar para o serviço de socorro. No fundo da rua, surgiram uma ambulância e um carro de bombeiros.
João continuava a gritar coisas sem nexo e a tentar erguer-se no cimo do telhado. A mãe, desesperada, tomou consciência de que o seu filho não era perfeito. A sua mente estava irremediavelmente desarrumada. Quando os bombeiros o conseguiram fazer descer, os pais tiveram que aceitar que o seu filho precisava de ajuda médica. E, abraçados, choraram a “morte" de um filho que nunca existiu, o filho de sonho.

 

Neste desafio de inspiração artística, participam estes criativos  Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCélia, Cristina Aveiro, Fátima BentoImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas

 

Easy on me, Adele

Charneca em flor, 08.11.21

A grande maioria das músicas que partilho são portuguesas ou lusófonas. Mas, de vez em quando, há uma ou outra música noutra língua que me chama a atenção. É o caso da reconhecida Adele. A cantora lançou este single recentemente. O seu último álbum, 25, foi editado em 2015. "Easy On Me" faz parte do próximo trabalho, aind sem título oficial, da britânica. Nas suas palavras, este álbum foi influenciado pelo seu divórcio que ocorreu em 2019.

 

Boa semana.

 

"Adeus, Futuro", Maria do Rosário Pedreira

Charneca em flor, 07.11.21

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Depois de uma leitura muito intensa nas primeiras semanas de Outubro, resolvi pegar neste "Adeus, Futuro" para terminar o mês. Este livro reúne as crónicas publicadas por Maria do Rosário Pedreira no jornal Diário de Notícias durante um ano e meio, entre o ano de 2018 e o ano de 2020. 

Para quem não conhece Maria do Rosário Pedreira, ela é uma das mais importantes figuras do meio literário português. Embora já tenha publicado livros infantis, um romance, contos e livros de poesia, Maria do Rosário Pedreira tem na carreira editorial a sua principal actividade. A ela se deve a descoberta de inúmeros escritores portugueses contemporâneos. O seu enorme talento para brincar com as palavras levou-a também a escrever letras para canções maioritariamente para fado tendo entrado nesse mundo pela mão de Carlos do Carmo.

A pequena frase que dá título ao livro era a frase que a autora utilizava para terminar as crónicas mas não se pense que se tratam textos saudosistas. Nada disso. No entanto, a autora parte de histórias do seu passado, ou de relatos que lhe chegaram de outras pessoas, para analisar a sociedade actual naquilo que tem de bom e de menos bom. Já conhecia algumas crónicas porque Pelas suas palavras, percebe-se que Maria do Rosário é uma pessoa atenta ao mundo que a rodeia. Não concordo com tudo aquilo que escreve embora reconheço que estas crónicas me levaram a reflectir sobre coisas nas quais não costumo reparar ou dar importância. No entanto, às vezes também me questiono sobre o rumo que a humanidade vai tomar nos anos vindouros.

"Eu sei que se desvalorizou o prestígio de falar bem em público (basta ouvir alguns dos nossos políticos...) e que os jogos, as séries em streaming, as redes sociais e o YouTube têm arrancado cada vez mais jovens à leitura: se, nos anos oitenta, estes usavam cerca de mil e quinhentas palavras no seu quotidiano, o número baixou actualmente para cerca de trezentas palavras (e algumas são 《fogo》, 《bué》, 《fixe》, ou simples muletas como 《meu》 ou 《tipo》). O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que nem sequer é o mais completo de sempre, tem 228 mil entradas, e o mais modesto Priberam, que pode consultar-se gratuitamente online, tem, mesmo assim, 115 mil. Se os nossos adolescentes não usam mais de trezentos vocábulos e a leitura não parece atraí-los para corrigir a situação, que irá acontecer-lhes no dia em que começarem a faltar-lhes os nomes para as coisas? Adeus, futuro."

 

Desafio Arte e Inspiração #8

A sedutora

Charneca em flor, 03.11.21

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Ilustração de Moda, Almada Negreiros

 

Quando a via passar, Bento ficava completamente transtornado. Aquela mulher era magnética. A altivez e a elegância com que ela caminhava conferia-lhe uma certa nobreza. Não se pense que ele a vigiava. Apenas se dava a estranha coincidência de ele sair de casa precisamente à mesma hora a que ela passava à sua porta. Todos os dias. Mantendo uma certa distância, ele acompanhava-lhe os passos sentindo o halo de perfume que ela deixava à sua passagem.

Bento era um homem tímido, muito diferente dos homens da sua geração.

Naquela época, era suposto que o homem fosse o sedutor e que a mulher fosse recatada. Pelo menos, aparentemente. Na verdade, uma mulher inteligente era perfeitamente capaz de ser ela a sedutora mas fazendo com que o homem acreditasse nas suas qualidades irresistíveis de galanteio.

Conceição Felicidade era, sem dúvida, uma mulher inteligente e já percebera que aquele desconhecido se perturbava com a sua presença. Há muito que reparava nele e na maneira como a olhava quando se cruzavam. Na verdade, o seu aspecto e porte também lhe tinham chamado a atenção. Só ainda não descobrira como havia de chegar à fala com aquele homem sem o assustar nem parecer uma oferecida. O equilíbrio era muito ténue. Por mais que se vivessem os loucos anos 20 por essa Europa fora, Portugal continuava a ser um país retrógrado. Algumas atitudes nunca seriam bem vistas numa mulher séria. Ela ansiava que aquele homem lhe dirigisse a palavra porque ela teria todo o prazer em retribuir-lhe essa atenção. No entanto, a situação já se arrastava há semanas e Conceição Felicidade queria confirmar se aquele homem estava mesmo interessado. De repente, fez-se luz na sua mente.
Sem perceber bem de que se tratava, Bento reparou que a sua musa deixara cair algo. O homem estugou o passo. Abandonada no passeio, jazia uma singela luva amarela. Aquela era a oportunidade que Bento precisava. A luva pertencia àquela bela mulher e fora isso que ele vira cair. Bento andou ainda mais depressa de modo a conseguir alcançá-la.

Conceição Felicidade olhou para trás, o mais disfarçadamente que conseguiu, e viu que ele mordera o isco. Percebendo que ele começara a andar mais depressa, ela parou diante de uma montra para lhe facilitar a tarefa.

- Minha Senhora, peço desculpa mas penso que isto lhe pertence.

Fingindo-se sobressaltada, Conceição Felicidade virou-se para o encarar.

- Oh, perdão. Não queria assustá-la. Acho que deixou cair a sua luva.

Conceição Felicidade sorriu-lhe, corando de forma encantadora. Aceitando a luva, deixou que os dedos de ambos se tocassem provocando-lhes um arrepio electrizante.

- Muito obrigada, não me tinha apercebido de que a tinha perdido. – disse ela enquanto o olhava nos olhos de modo fugaz.

Bento, espezinhando a sua timidez e percebendo tinha que aproveitar aquela oportunidade única, arriscou num convite:

- Posso oferecer-lhe alguma coisa para compensar o susto que lhe provoquei? Aqui ao lado há uma casa de chá muito agradável.

Conceição Felicidade já não tinha dúvidas de que estava no bom caminho. Apoiando-se no braço que ele lhe oferecia, ela preparou-se para concluir, com sucesso, a ardilosa tarefa de o cativar.

 

Neste desafio de inspiração artística, participam estes criativos  Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCélia, Cristina Aveiro, Fátima BentoImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas

 

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