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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Beloved, Toni Morrison

Charneca em flor, 27.06.22

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Junho já está quase a acabar e eu ainda não partilhei todos os livros que li em Maio. "Beloved" foi a escolha desse mês da Rita da Nova para o Clube do Livra-te. Esta obra desenrola-se à volta de uma história tão dura e pesada que me levou a não consegui a escrever sobre ele senão um mês depois de o ter lido.

A autora, Toni Morrison, foi distinguida com o Prémio Nobel da Literatura em 1993 e este livro ganhou o Prémio Pulitzer.  No entanto, um livro premiado, tal um vinho por exemplo, pode ou não ser adequado às nossas preferências. Tudo depende daquilo que nos faz sentir.

A trama principal de Beloved gira à volta de um facto verídico ocorrido em Kentucky em 1856. A autora parte desse acontecimento para nos mostrar o horror da escravatura a que tantos homens, mulheres e crianças foram sujeitos.

O processo de abolição da escravatura nos Estados Unidos da América foi gradual uma vez que, enquanto os estados no Norte optavam por acabar com essa prática desumana, os estados do Sul, onde existiam as grandes plantações, pretendiam perpetuá-lo. O papel deste diferente entendimento do trabalho escravo nos diferentes estados pode ter contribuído para a Guerra Civil Americana (Norte-Sul) mas esta influência é controversa historicamente.

Toni Morrison através deste romance e das suas personagens principais como a mulher negra Sethe faz-nos olhar para as sevícias a que os negros eram sujeitos nessa época e como isso pode ser determinante para "justificar" atitudes incompreensíveis das pessoas que vivenciaram algum tipo de tratamento desumano. A autora aborda, também, como certos actos irreflectidos podem gerar sentimentos de culpa que pesam na alma para o resto da vida. A culminar toda esta dureza e crueldade, no fim, o amor e a amizade acabam, de certa forma, por triunfar.

Não foi um livro fácil de ler o que prova que é aceitável não adorar tudo aquilo que é premiado. Não desisti de ler porque a vontade de perceber até onde esta história ia foi mais forte. No fim, acho que valeu a pena porque saí mais rica desta leitura. 

 

"Falava acerca do tempo. É-me difícil acreditar nele. Algumas coisas passam. Desaparecem. Outras limitam-se a ficar. Eu achava que era a minha memória. Tu sabes. Esquecemo-nos de algumas coisas. Outras nunca esquecemos. Mas não é  isso que acontece. Os lugares, os lugares permanecem. Se uma casa arde, desaparece, mas o lugar onde se encontrava, a sua imagem, fica, e não apenas na minha memória, mas também lá fora, no mundo. Aquilo que lembro e uma imagem que flutua fora da minha cabeça. Quero dizer, mesmo que não pense nela, mesmo que morra, a imagem do que fiz, ou conheci ou vi permanece lá. No mesmo sítio onde tudo aconteceu."

Spring, Ali Smith

Charneca em flor, 24.06.22

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Embora o Verão já tenha começado, o clima farrusco que se tem vivido nos últimos dias faz-nos pensar que a Primavera ainda não começou. Assim faz todo o sentido falar deste livro, "Spring". Este livro faz parte de uma tetralogia escrita pela britânica Ali Smith e que têm o nome das estações do ano. "Autumn" e "Winter" já li. Agora só fica a faltar o "Summer".

Embora se consiga estabelecer alguma ligação entre todas as obras, as histórias são independentes.

Em "Spring" encontramos 3 personagens centrais, um realizador de televisão em declínio, uma jovem que trabalha como segurança nas instalações de uma unidade de detenção de emigrantes e uma adolescente muito peculiar. Na parte inicial do livro, Ali Smith descreve alguns pormenores da vida do realizador e da jovem separadamente até que os seus destinos acabam por se cruzar.

Ali Smith volta a abordar alguns temas que já se encontravam nos outros dois volumes como sejam a velhice, a solidão, a política, a emigração ou os excluídos da sociedade, os invisíveis. Em "Spring", as condições de vida de um certo tipo de emigrantes é um dos temas que a autora mais desenvolve.

Pelo que me foi dado perceber, os nomes dos livros não tem, directamente, a ver com o espaço temporal em que as histórias decorrem mas sim com o ambiente que se vive. Neste caso considero que "Spring" tem a ver com a renovação e com a oportunidade de um certo recomeço que é dada às personagens. 

A escrita de Ali Smith continua a ser um dos pontos fortes e, provavelmente, é o mais cativante. A experiência de leitura em inglês continua a ser interessante e enriquecedora. 

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"There are much less bloody ways to hope for spring, the girl said. Better ways of working fruitfully with the climate and the seasons, than by sacrificing people to them. And anyway, you’re only doing it because some of you get off on the brutality. One or two people always do, always will. And the rest of you are worried that if you don’t do what everybody else is doing then the ones who get off on it might decide to choose you for the next sacrifice."

"April the anarchic, the final month, of spring the great connective. Pass any flowering bush or tree and you can’t not hear it, the buzz of the engine, the new life already at work in it, time’s factory."

 

P.S. - Obrigada, Rita da Nova, por me teres "apresentado" Ali Smith.

 

 

O Ano do Pensamento Mágico, Joan Didion

Tradução de Hugo Gonçalves

Charneca em flor, 14.06.22

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De vez em quando ouvia falar deste livro e fiquei curiosa porque as opiniões eram muito positivas. Por outro lado, não conhecia esta escritora uma vez que não sou muito entendida em literatura norte-americana. O formato que escolhi foi audiolivro para poder ouvir o livro enquanto fazia caminhadas.

"O Ano do Pensamento Mágico" é uma reflexão sobre a perda, o luto e sobre a maneira como lidamos com a circunstância de nos falecer uma pessoa muito próxima. O marido de Joan Didion, o argumentista John Gregory Dunne, sofre um enfarte quando o casal se prepara para jantar depois de visitarem a filha que está internada devido a uma infecção complicada. Muitos meses depois, Joan Didion debruça-se sobre a dor, relembra os pormenores que rodearam o episódio da morte bem como as recordações da vida que partilharam. Através da escrita, Joan abraça a sua dor, vive o luto e reaprende a viver ao mesmo tempo que acompanha a filha que, durante o ano que se seguiu à morte do pai, sofreu uma série de problemas de saúde muito graves.*

Este livro tocou muitos leitores. Por um lado, quem teve que lidar muito cedo com a partida de alguém, como eu, revê-se naquilo que Joan viveu e percebe aquilo que sentiu, ou que sente até hoje, no momento do luto. Mesmo quem nunca teve que lidar com a morte de alguém próximo, se sente tocado pela forma sincera como a autora se expõe e expõe a sua dor. "O Ano do Pensamento Mágico" é, sem dúvida, um livro muito especial.


"《Trazê-lo de volta》 tinha sido durante meses, a minha missão escondida, um truque de magia. No final do verão, comecei a ver isso mesmo com clareza. 《Ver isso com clareza 》 não me permitia ainda oferecer as roupas de que ele iria precisar.

Em tempos conturbados, e eu tinha sido treinada, desde criança, a ler, a aprender, a
trabalhar, a ir em busca da literatura. Informação era controlo. Tendo em conta que a dor da perda continua a ser a maleita mais comum, a literatura que lhe é dedicada pareceu-me notavelmente escassa."

*Quintana Dunne, filha adoptiva de Joan Didion e John Dunne, acabou por falecer enquanto o livro da mãe estava a ser lançado. Este novo incidente trágico levou Joan Didion a escrever o livro "Blue Nights"

"O corpo é que paga", António Variações

Charneca em flor, 13.06.22

Há 38 anos morria, em Lisboa, o  artista português mais surpreendente de sempre. António Variações teve uma carreira musical de, apenas, 2 anos. Sempre que aparece alguém mais fora da caixa é com ele que se compara. As suas canções são apreciadas até hoje mas ele não sabia uma única nota musical. António Variações foi uma pedrada no charco e continua a ser uma referência.

 

"A Filha do Guardião do Fogo, Angeline Boulley

Charneca em flor, 03.06.22

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No âmbito do Clube do Livra-te, um dos livros que li no mês de Maio foi "A Filha do Guardião do Fogo" de Angeline Boulley, escolhido pela Joana da Silva.

Esta obra foi uma excelente surpresa. Inicialmente, pensei tratar-se de um livro muito conotado com o estilo "young adult" mas não tem nada a ver. Este livro saiu há pouco tempo em Portugal e foi traduzido por uma jovem muito activa no Bookstragram*, Elga Fontes. A autora aborda várias problemáticas que, a meu ver, se conjugam na perfeição.

A personagem principal é uma inteligente jovem de mãe branca, de uma das famílias mais abastadas da cidade, e de pai nativo-americano. Embora sinta algumas dificuldades em se integrar quer numa comunidade quer na outra, vai tentando chegar a um certo equilíbrio embora a sua vida recente tenha passado por alguns percalços. De repente, a cidade começa a ser abalada por acontecimentos trágicos onde Daunis se vê, inesperadamente envolvida. 

"A Filha do Guardião do Fogo" tem inúmeros ingredientes que tornam a leitura cativante como sejam mistério, crime, romance e cultura indígena americana. Apercebi-me de que pouco mais sei da realidade nativo-americana do que aquilo que Hollywood nos mostrava nos antigos westerns e os indígenas eram, quase, sempre os maus. Confesso que fiquei fascinada e com vontade de saber mais. Um dos pormenores desta cultura, ou pelo menos da tribo retratada no livro, é o respeito pelos mais velhos. A relação com os elementos mais idosos da comunidade é encantadora.

Em suma, gostei muito deste livro e recomendo-o a quem aprecie conhecer uma cultura diferente mas que também goste de mistério e romance.

"Repouso sobre uma grande rocha, numa ilha de pedra rodeada de bosques. A chuva acabou de parar; gotas pesadas escorrem dos ramos e pingam quando se encontram no chão da floresta. Uma brisa agita as árvores, transformando-as em sinos de vento. Os últimos vestígios de chuva escorrem agora em salpicos mais suaves. Os pedregulhos roncam, baixos e constantes. A luz do Sol penetra a cobertura da floresta lançando feixes que despertam os amores-perfeitos adormecidos.
À esquerda, há uma pequena fogueira rodeada pelas pedras do avô. A este. O seu fumo sobe, convocando orações nas cadências melódicas de Anishinaabemowin. À
minha frente, a sul, há outra fogueira com mais avôs e orações transportadas em fumo cinzento. A minha direita, a oeste, os avos aguardam. Ainda não há fogo. Atrás de mim, a norte, mais Avôs pacientes.
Os amores-perfeitos cantam para mim. Circundam a rocha, pontilhando a periferia com caras amarelas e roxas, balançando suavemente. Todas estas vozes que se misturam. Adiciono a minha, avançando através do refrão até encontrar um nicho que a minha voz preencha, para tornar a canção completa.

Este mundo existe para lá de qualquer contentamento e beleza que alguma vez conheci."

 

*páginas de Instagram onde se publicam, maioritariamente, conteúdos relacionados com livros e literatura.