Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Arraial Triste, Ana Moura

Charneca em flor, 31.10.22

Felizmente, ainda, é possível cada um ser o que quiser. Ana Moura é um excelente exemplo disso. Depois de uma carreira de quase 20 anos como a fadista mais bem sucedida da sua geração, Ana Moura arriscou reinventar-se. Aliás, a artista semore foi, ao longo dos anos, muito mais do que uma fadista tradicional. Quem não se recorda da sua colaboração com os Rolling Stones?!

Nos últimos anos temos assistido uma mudança mais ou menos gradual que, presumo, tem horrorizado os puristas do fado. Não sei o que terá começado primeiro, a colaboração profissional ou a relação amorosa, mas a verdade é que esta mudança terá algo a ver com Pedro Mafama, seu companheiro e pai da sua filha. No entanto, isso é indiferente. Aquilo que Ana Moura transmite agora já existia dentro dela, só que foi despertado pelos artistas com quem se têm cruzado ultimamente.

Muitos dirão que aquilo que Ana Moura canta agora, já não é fado. Pode ser ou não, mas ninguém pode negar que Ana Moura canta a essência portuguesa.

Aqui fica o novo single,

Ana Moura, continua a ser sempre aquilo que quiseres ser.

Boa semana.

 

levantado do chão, José Saramago

Charneca em flor, 25.10.22

IMG_20220925_171943.jpg

Em Setembro li mais um livro de José Saramago para a Leitura Conjunta de Saramago. O livro escolhido pelo grupo foi "levantado do chão". Esta obra foi publicada em 1980 e é considerada uma das obras fundamentais do autor. Durante a escrita do livro, José Saramago viveu algum tempo em Lavre no concelho de Montemor-o-Novo. As conversas com os habitantes da vila bem como as histórias que lhe contaram foram, de certeza, fonte de inspiração.

A acção de "levantado do chão" decorre desde o final do séc. XIX até aos primeiros dias após a Revolução dos Cravos. Os grandes protagonistas são os trabalhadores do campo, com especial relevo para as três gerações da família Mau-Tempo. Saramago construíu uma história em torno da vida numa estrutura latifundiária, sistema de propriedade muito comum  no Alentejo. José Saramago retrata de forma brilhante a miséria, o sofrimento, as humilhações e a repressão a que os camponeses estavam sujeitos nesse sistema, não só perante o poder económico dos grandes proprietários mas também perante a Igreja e as autoridades policiais. Neste livro percebemos também os movimentos de revolta e de luta por melhores condições de trabalho e de vida que, de forma mais ou menos organizada, foram surgindo mesmo durante o tempo da ditadura. A Reforma Agrária que ocorreu após o 25 de Abril de 1974 tem as suas raízes, precisamente, nesses movimentos pelo direito ao trabalho condigno e ao justo pagamento.

No início, não foi muito fácil para mim entrar no livro porque José Saramago utiliza muitas personagens dificultando o acompanhamento do curso da narrativa. A partir de metade do livro, sensivelmente, já li com muito mais velocidade e interesse. Acredito que foi com "levantado do chão" que o autor descobriu a sua maneira de escrever tão característica.

Esta leitura foi muito significativa para mim porque as minhas origens são alentejanas e a minha mãe cresceu num latifúndio, não muito longe de Lavre. Embora a família da minha mãe não tenha passado por este tipo de problemas - o meu avô tinha trabalho fixo e não trabalhava à jorna como os camponeses do livro - revi, nesta obra, as histórias que ouvi desde pequena sobre a vida no campo. Aliás, sempre gostei de saber como era a vida nesse tempo.

Eis o que José Saramago disse sobre o livro:

"O livro chama-se Levantado do Chão porque, no fundo, levantam-se os homens do chão, levantam-se as searas, é no chão que semeamos, é no chão que nascem as árvores e até do chão se pode levantar um livro."

Para mim, a experiência acabou por ser muito positiva mas reconheço que não será um livro adequado a todos aqueles que gostam de ler.

"O mundo, com todo este seu peso, esta bola sem começo nem fim, coberta de mares e de terras, toda esfaqueada de rios, ribeiras e regatos, a escorrer a aguazinha clara que vai e volta e é sempre a mesma, suspense nas nuvens ou escondido nas nascentes por baixo das grandes lajes subterrâneas, o mundo que parece uma brutidão aos tombos no céu, ou silencioso pião como um dia o hão-de ver os astronautas e já podemos ir antecipando, o mundo é, visto de Monte Lavre, uma coisa delicada, um relogiozito que só pode aguentar um tanto de corda e nem uma volta mais, e se põe a tremer, a palpitar, "

Como se fôssemos vilões, M. L. Rio

Charneca em flor, 18.10.22

IMG_20221016_162615.jpg

"Como se fôssemos vilões" foi o livro escolhido pela Rita da Nova para o Clube do Livra-te no mês de Setembro. Neste livro encontramos sete jovens estudantes de uma escola de arte muito especial onde estudam a dramaturgia de Shakespeare. Os jovens frequentam o último ano do curso. Oliver, James, Filipa, Richard, Alexander, Meredith e Wren apresentam personalidades muito similares às personagens que encarnam nas peças de Shakespeare que são encenadas na escola a ponto de os conflitos das obras se prolongarem para a vida real estabelecendo-se entre eles uma rivalidade saudável. A dada altura a amizade entre eles enfrenta uma prova inesperada após um acontecimento trágico.

O livro está organizado como uma peça de teatro, em actos e cenas, o que faz com que o leitor se sinta espectador de uma verdadeira peça de teatro. Esta história conquistou-me quase desde o início e adorei o ambiente outonal que se sente. "Como se fôssemos vilões" fez-me recordar os meus tempos de jovem universitária e tive muitas saudades dessa época. Gostei muito da forma como a autora construiu a história e do tom de mistério que envolve o acontecimento determinante para toda a história. 

A overdose de Shakespeare era dispensável. Obviamente que era essencial que houvessem passagens da obra quando estavam a encenar as peças mas utilizarem frases de Shakespeare numa conversa "normal" já me pareceu exagero. Outro ponto negativo é que se percebe, desde uma fase mais precoce da narrativa, quem foi o maior responsável pela tragédia que lhes mudou a vida. No entanto, acredito que a autora pretendeu dar mais ênfase à dinâmica que se estabelece entre os jovens quando estão perante uma situação limite. A resolução do mistério era secundária para a história que a autora pretendia contar.

Esta leitura foi uma óptima experiência mas dificilmente teria lido este livro se não tivesse sido escolhido para o Clube do Livra-te. Como estava com outras leituras, demorei algum tempo a terminá-lo mas é um livro que se lê com vontade em pouco tempo.

 

"Entram em cena os atores. Éramos sete nessa altura, sete almas fulgurantes com futuros prodigiosos a nossa frente, embora não víssemos mais longe do que os livros diante dos nossos rostos. Estávamos sempre rodeados por livros e palavras e poesia, todas as paixões ferozes do mundo em papel fino entre capas de carneira. (Atribuo em parte a culpa do que aconteceu a esse facto.) A biblioteca do Castelo era uma sala octogonal arejada, forrada a estantes, atravancada com peças de mobiliário antigas e sumptuosas, e mantida a uma temperatura que provocava sonolência, por um monumental fogão de sala quase constantemente aceso, independentemente da temperatura no exterior. O relógio na prateleira por cima da lareira deu as doze badaladas, e nós mexemo-nos, um a um, como sete estátuas a
ganharem vida."

Golden Days, Cristóvam

Charneca em flor, 17.10.22

A primeira vez que ouvi falar de Cristóvam foi nos primeiros dias da pandemia. Este jovem músico, compositor e letrista açoriano foi o autor de uma música que se tornou viral, "Andrà tutto bene", uma mensagem de esperança e de homenagem aos profissionais de saúde italianos, os primeiros a enfrentarem a Covid-19 na Europa.

Na altura nem percebi que era português. Só descobri que Cristóvam era açoriano mais tarde quando vi alguns episódios da série Mal-Amanhados - Os Novos Corsários das Ilhas. Só nessa altura é que descobri a sua maravilhosa música.

No sábado passado, ouvi a repetição do programa Concerto de Bolso da TSF e descobri que tinha um novo disco. Ainda não ouvi todo mas gostei muito das músicas que já descobri. 

Assim hoje partilho "Golden Days", um dos seus singles.

 

Boa semana

 

Desafio Arte e Inspiração 2.0, semana #4

Campo de Papoilas, Claude Monet

Charneca em flor, 12.10.22

Anabela sentiu-se dominada pela emoção quando abriu a porta. Aquela casa tinha sido testemunha de alguns dos melhores momentos da sua infância e adolescência. Ali tinha morado a sua tia-avó , Sofia, a irmã mais velha da sua avó materna.

Sofia vivera de forma muito diferente daquilo que era habitual na sua geração. Nunca fizera aquilo que era esperado de uma mulher. Não casara, não tivera filhos e tivera sucesso numa profissão muito pouco feminina. Apesar de ter tido uma vida muito preenchida, Sofia era muito dedicada à família, amara profundamente todos os seus sobrinhos mas a ligação com Anabela era muito especial. Sofia tinha acabado de se reformar quando Anabela nasceu e acabou por ser uma grande ajuda para a jovem mãe. A proximidade entre tia-avó e sobrinha, nos primeiros tempos de vida, tinha forjado a relação privilegiada entre ambas. A casa da tia Sofia era o refúgio preferido de Anabela. Adorava explorar as centenas de livros que a tia possuía ou a ouvi-la contar as peripécias das inúmeras viagens.

No testamento, Sofia deixado a casa à sobrinha-neta bem como todo o recheio.Embora Anabela não desejasse alienar a herança da tia, a conjectura económica estava a dificultar a manutenção da casa. Ela achava que, ao vender a casa da tia Sofia, estava a destruir as suas melhores lembranças. Por outro lado, deixar que a casa se deteriorasse também não era uma boa forma de honrar a sua memória. Anabela acabara por decidir deixar que outros construíssem novas memórias felizes por ali. Só que retirar os objectos pessoais da tia não era uma tarefa nada fácil.

- Mãe, olha que giro. – Florbela, a filha adolescente de Anabela, tinha-se oferecido para a acompanhar. Aquela casa, repleta de objectos fantásticos, fascinava-a. Infelizmente, Florbela não tinha privado muito com a idosa porque, nos últimos anos, a demência tinha roubado a consciência daquela mulher tão especial.

22369663_Spzgq.jpeg

Nas mãos de Florbela estava uma caixa com ar envelhecido exibindo uma reprodução de um quadro do pintor preferido da tia Sofia. Algumas lágrimas afloraram aos olhos de Anabela. A filha encontrara um puzzle que fora comprado em Paris, no Museu d' Orsay. Quando fizera 15 anos, a tia, já com uma ligeira demência, insistira que era preferível oferecer experiências em vez de objectos. Assim o seu presente de aniversário fora uma viagem a Paris. “Campo de papoilas", de Claude Monet, tinha sido um dos quadros que tinham visto ao vivo e a tia não resistira a comprar aquele puzzle. Uns dias depois do regresso, a tia espalhara as peças em cima da mesa de jantar e começara a tentar construir o puzzle. Anabela prometera ajudar mas o fulgor da juventude levara-a a adiar várias vezes as visitas à tia. O puzzle nunca tinha sido terminado apesar de ter estado mais de um ano em cima da mesa de jantar. Alguém acabara por o arrumar até aparecer nas mãos de Florbela.

A jovem adorava aquele tipo de actividades. A mesa da sala de jantar voltou a servir de suporte às peças recortadas. Anabela sorriu quando viu a concentração com que a filha se debruçava sobre a mesa.

Quer mãe quer a filha embrenharam-se de tal forma nas tarefas que desempenhavam que não deram pelas horas passarem. Anoitecia quando Florbela chamou pela mãe:

- Consegui, consegui. Mãe, consegui.

Onde antes reinava a confusão, surgira a imagem de um dos mais belos quadros de Monet. Anabela ficava sempre impressionada com a facilidade e rapidez com que a filha fazia puzzles por maiores ou mais complicados que fossem.

- Só falta uma peça. Queres ser tu a colocar a última? – sugeriu Florbela.

- Pode ser. Deixa cá ver.

Assim, anos depois, o “Campo de Papoilas" estava, finalmente, completo. Pela janela entreaberta, entrou uma brisa morna mas ligeira. Anabela olhou na direcção da janela e pareceu-lhe vislumbrar o rosto sorridente da sua velha tia.

 

Este texto foi escrito no âmbito do Desafio de escrita Desafio de Escrita Desafio Arte e Inspiração V2.0 lançado pela querida e inexcedível Fátima Bento e no qual participam, para além da Fátima e desta que vos escreve, os seguintes brilhantes autores: Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yueCéliaCharneca Em FlorCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso Machado, o José da XãMaria AraújoOlga.

 

Já agora, aproveito para contar que tenho, efectivamente, um puzzle com este quadro que nunca terminei. Um dia, a minha manicura estava a contar-me que a filha de 15/16 adorava fazer puzzles. Fiquei surpreendida porque não estava à espera que uma miúda dessa idade ligasse a estas actividades. Assim dei-lhe o puzzle e ela fê-lo numa tarde. Mais tarde, devolveram-me o puzzle e acabei por emoldurá-lo. Assim, no meu escritório, tenho um Monet e um Munch.

IMG_20221012_145343.jpg

 

 

 

Sem amor, Alice Oseman

Charneca em flor, 07.10.22

IMG_20221006_232405.jpg

Alice Oseman é uma jovem escritora e ilustradora inglesa que já tem vários livros publicados mas tornou-se mais conhecida pela saga bestseller Heartstopper a qual já foi, também, adaptada a uma série para a Netflix. Esta autora dedica-se, principalmente, à temática LGBTQ+ direccionada para os leitores mais jovens. "Sem amor" foi a escolha de Setembro da Joana da Silva para o Clube do Livra-te. Apesar deste livro ser marcadamente jovem, achei que valia a pena lê-lo mesmo sendo uma quarentona. 

A história gira à volta de Georgia, uma jovem que adora romances cor-de-rosa, sonha com um grande amor e com um final feliz mas nunca se apaixonou. No início do livro, acompanhamos Georgia, e os seus melhores amigos, durante a festa que se seguiu ao baile de finalistas. Os jovens preparam-se para irem, juntos, para a Universidade e é nesse ambiente que Georgia procura perceber a sua sexualidade e a sua verdadeira natureza.

"Sem amor" tem alguns pormenores que me encantaram mas também tem alguns pontos menos positivos. A temática é muito importante mas também gostei muito da interacção entre Georgia e os amigos, Jason e Pip, bem como das amizades que Georgia vai construído na Universidade. Aliás "Sem amor" é uma bonita história de amizade. No que diz respeito àquilo que menos apreciei, quero referir o facto de autora repetir várias vezes a mesma ideia para descrever Georgia e também acho que não havia necessidade de a autora criar várias personagens com a vivência da sexualidade idêntica à de Georgia. Acho que tal não era necessário para percebermos aquilo que Alice Oseman nos pretende transmitir. Esta repetição torna o livro muito maior do que o necessário.

A meu ver, este livro é uma excelente leitura para jovens, pais e educadores. Aquilo que o livro nos pode trazer vai muito além da questão da vivência da sexualidade. Por exemplo, os jovens são, muitas vezes, levados a comportamentos que não desejam para se sentirem integrados no grupo ou tomam decisões erradas por algo que confundem com amor. Aquilo que a autora coloca na vida destas personagens pode ser extrapolado para todas as situações que acontecem na vida dos adolescentes.

De qualquer forma, Alice Oseman tem muito valor pela coragem e abertura em construir boa ficção sobre estas temáticas. Talvez precise de melhor orientação editorial na escrita de romance.

"Foi um pouco foleiro, talvez. Mas também for um dos discursos mais adoráveis que ouvi em toda a minha vida.

Todos ergueram as suas bebidas e, em seguida, aclamaram o Sunil
quando ele desceu e a Jess o soterrou num abraço.

Era aquilo. Era daquilo que se tratava.

O amor naquele abraço. O olhar cúmplice entre eles.

Eles tinham a sua história de amor.

Era isso que eu queria. Era o que eu tinha tido, em tempos, talvez.

Costumava sonhar com um romance enfeitiçante, interminável, para sempre. Com uma bela história de conhecer uma pessoa capaz de mudar todo o nosso mundo.

Mas agora, percebi, a amizade também podia ser isso."

 

 

Desafio Arte e Inspiração V2.0, semana #3

The Lady off Shalott, John William Waterhouse

Charneca em flor, 05.10.22

A sua alma estava tão sombria como aquele recanto do rio. A dor que sentia oprimia-lhe o peito e impedia-a de respirar.

Sempre que estava triste, Madalena refugiava-se ali. Olhar para a corrente, acalmava-lhe o coração. A constante renovação da água que passava ajudava-a a acreditar que, fosse qual fosse o seu problema, a solução iria surgir tão clara e límpida como o rio.

Desta vez, nada acalmava Madalena. Não conseguia impedir as lágrimas que lhe molhavam o rosto. Nunca tinha conhecido um tal sofrimento.

A jovem sentira-se diferente desde criança. Embora se sentisse amada pela família, a população da sua aldeia ribeirinha olhava para ela com desconfiança. Os seus cabelos ruivos causavam estranheza e receio por serem tão pouco frequentes. Os aldeões associavam a cor dos seus cabelos ao fogo do inferno, acreditavam que Madalena transportava o mal no seu coração. Na verdade, a jovem nunca se tinha apercebido muito dessa animosidade para com ela porque a família sempre a tinha protegido.

A razão destes sentimentos incompreensíveis, iniciados logo quando ela nascera, tinha a sua origem num passado distante. Há muitas dezenas de anos, existira outra ruiva na família, Helena de seu nome. O quadro que a retratava estava pendurado na biblioteca da quinta.

transferir.jpeg

A antepassada de Madalena sofria de distúrbios psiquiátricos graves, num tempo em que essas situações eram justificadas por motivos muito pouco científicos. No caso de Helena fora a própria família a alimentar os rumores de que ela estava possuída pelo demónio. As tentativas de exorcismo foram constantes mas todos os sacerdotes saíam derrotados de tais sessões. O seu estado psicológico foi-se agravando até ela se ter suicidado. Ou pelo menos fora isso que se pensara já que o seu corpo nunca fora encontrado. Helena também gostava muito de se isolar junto ao rio, perto do ancoradouro. Nunca se teve a certeza do que aconteceu no dia em que ela desapareceu. O primeiro sinal de alarme fora o fogo. As árvores nas margens do rio tinham-se incendiado sem se perceber como. A população da aldeia e os empregados da quinta conseguiram controlar o fogo antes que chegasse às casas mas grande parte das colheitas tinha-se perdido, irremediavelmente. Só depois se deu pela ausência de Helena. O pequeno barco, habitualmente ancorado, fora encontrado no meio do rio sem ninguém lá dentro por isso concluíra-se que ela se tinha lançado ao rio para se afogar depois de provocar o incêndio . Os aldeões acreditavam que o seu fantasma nunca abandonara a margem do rio e afirmavam ouvir o seu choro aflitivo em dias de nevoeiro tão sufocante como o fumo de um fogo ardente.

Quando se soubera que voltara a nascer uma menina ruiva naquela família, depressa correu a notícia de que Madalena era uma reencarnação de Helena. Os seus entes queridos não alimentavam estas superstições mas tinham muito receio da maldade das pessoas por isso evitavam que ela tivesse contacto com as pessoas da aldeia. Madalena regressara à aldeia para as férias de Verão depois de mais um ano lectivo no colégio. Quando o automóvel passou próximo da aldeia, Madalena percebeu que havia mais movimento e animação do que era habitual. A aldeia estava em festa honrando a santa padroeira. A jovem ficou curiosa. Não fazia ideia de como seria tal festividade. A brisa de Verão transportava o som da música até à sua janela. Nunca percebera porque é que os seus pais não queriam que ela fosse à aldeia. A curiosidade superou o respeito às determinações dos pais e caminhou até à aldeia. Nada a preparara para o horror que leu nos rostos de quem a olhava. Ela passava, as pessoas escondiam as crianças e corriam a fechar-se em casa. Um rumor de vozes foi aumentando até ela perceber que as pessoas diziam: “bruxa", “possuída”, “fora daqui", “desaparece", “não te queremos aqui". Alguém atirou a primeira pedra e todos se seguiram. Madalena foi apedrejada e escorraçada da aldeia. Não compreendia o que se passava mas correu o mais que pode para fugir dali. Percebeu que as pessoas tinham medo dela e sentiu-se mais sozinha do que nunca.

Nem a beira do rio a conseguiu acalmar. Olhou para o pequeno barco no ancoradouro e teve vontade de fazer como a sua antepassada Helena, lançar-se ao rio e desaparecer.

 

Este texto foi escrito no âmbito do Desafio de escrita Desafio de Escrita Desafio Arte e Inspiração V2.0 lançado pela querida e inexcedível Fátima Bento e no qual participam, para além da Fátima e desta que vos escreve, os seguintes brilhantes autores: Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCéliaCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas,

 

Chamada Não Atendida, Bárbara Tinoco

Charneca em flor, 03.10.22

A rejeição foi o melhor que podia ter acontecido à jovem Bárbara Tinoco em 2018 quando tentou a sua sorte no The Voice. Desde aí descobriu-se uma espectacular cantora e compositora responsável por algumas das mais belas canções dos últimos anos. É o caso do seu novo single, "Chamada Não Atendida", com uma letra que fala daquilo que o amor não deve ser. O vídeo termina de forma um pouco perturbadora, susceptível de inúmeras interpretações.

Boa semana.

Pág. 1/2