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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

"Uma Pequena Vida", Hanya Yanagihara

Charneca em flor, 01.02.23

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Ler "Uma Pequena Vida" é, antes de mais, um grande desafio. Afinal, são quase 700 páginas cuja leitura ocupou cerca de 19 horas, distribuídas ao longo de 20 dias. Durante esse tempo, senti-me completamente dominada por este leitura e refém da história criada por Hanya Yanagihara.

O ponto de partida é amizade que se desenvolve entre quatro jovens que se conhecem na Universidade, Willem, JB, Malcolm e Jude. Os laços que se forjam entre eles são tão fortes que se mantêm, com altos e baixos, por toda a vida. Em "Uma Pequena Vida" acompanha-se a entrada na vida adulta bem como as décadas seguintes. Enquanto os jovens procuram a auto-realização vão percebendo que a saúde física e psicológica do mais brilhante de todos, Jude, se vai deteriorando ao longo do tempo. Jude foi sempre o mais enigmático e misterioso. Em tantos anos de amizade, nenhum deles soube nada sobre a vida passada do amigo. E é no passado que se encontram todas as respostas.

Hanya Yanagihara criou uma história que tem tanto de fenomenal como de doloroso. As personagens estão muito bem desenvolvidas e é impossível não nos apaixonarmos por elas. Tal como pessoas reais, têm qualidades e defeitos e nem sempre têm as melhores atitudes, como acontece na vida. 

"Uma Pequena Vida" tem passagens muito bonitas que nos fazem acreditar no valor da amizade e do amor mas, ao mesmo, são descritas situações tão cruas e duras que conseguem provocar sensações físicas nos leitores. Em certos momentos, senti-me verdadeiramente nauseada e tive que parar a leitura porque não aguentava nem mais uma linha.

Admito que caí na "armadilha" da autora. Hanya Yanagihara manipula o leitor com tal mestria que, por mais "bofetadas" que as suas palavras me dessem, eu não conseguia parar de ler na esperança de que esta vida não fosse assim tão dramática.

Este livro faz-nos calçar os sapatos do outro, daquele que vive em constante sofrimento, daquele que tem atitudes incompreensíveis mas que não podemos julgar porque não conhecemos que caminho teve que percorrer até chegar ao momento em que se cruza connosco.

Não posso, em consciência, aconselhar esta leitura mesmo que "Uma Pequena Vida" tenha conquistado um lugar de destaque nos livros da minha vida. Este não é um livro para qualquer pessoa. Só alguém com uma grande capacidade de tolerância à dor será capaz de levar esta tarefa até ao fim. Não é uma leitura fácil mas eu sinto-me orgulhosa por ter conseguido ultrapassar a este desafio.

 

"Sentiu o aguilhão da culpa depois de falar com um e outro, mas a decisão estava tomada. Seria melhor assim, tinha a certeza: não trazia nada de bom às vidas deles. Era uma coleção de problemas bizarros, não mais do que isso, e, a menos que de alguma maneira se fizesse parar, consumi-los-ia com as suas necessidades. Exigiria
sempre mais, devorando-os a6te lhes deixar apenas os ossos. Encontrariam maneira de resolver cada dificuldade que eles lhe apresentassem e ele sempre encontraria novas maneiras de os destruir. Estariam de luto durante algum tempo, claro, porque eram pessoas boas - as melhores do mundo - ele lamentava que assim tivesse de acontecer, mas acabariam por perceber que tinham ficado melhor depois de ele partir. Dar-se-iam conta de todo tempo que Ihes fora roubado e concluiriam que ele fora um ladrão que lhes sugara a energia e a atenção até à ultima gota. Tinha esperança de que perdoariam, de que acabariam por ver que esta era a sua maneira de lhes pedir perdão. Estava a libertá-los. Eram as pessoas que ele mais amava no mundo e é isso que se faz quando se ama alguém: da-se-lhe a liberdade."

 

Deve ser, Deve - Guilherme Fonseca

Charneca em flor, 25.01.23

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Nos últimos dias de 2022, introduzi este livro no meio da leitura de um outro livro mais denso e mais longo. A leitura terminou já em Janeiro.

"Deve ser, Deve" é um livro de humor à volta de vários tipos de negocionismo. Embora o negacionismo e as teorias de conspiração sempre tenham existido, a pandemia tornou estas pessoas muito mais visíveis. 

O humorista Guilherme Fonseca fez o sacrifício de se debruçar sobre estes assuntos para nos dar a conhecer este mundo complexo. Às vezes custa a crer que estas pessoas existem e que acreditem piamente nestas teorias rocambolescas. Numa época em que o conhecimento científico está disponível à distância de um clique, é inacreditável que haja quem acredite em tantas patranhas e que siga os seus criadores como se de uma seita se tratasse.

O autor mergulhou nas águas mais profundas da internet, tentou perceber a forma como a mente destes chalupas funciona, descontruíu estas ideias e produziu um texto muito divertido. Obviamente, que estas pessoas facilitam o trabalho dos humoristas. Só a descrição da teoria em questão já dá vontade de rir mas o Guilherme Fonseca consegue aumentar o nosso nível de gargalhadas. E até me levou a descobriu teorias das quais eu nunca tinha ouvido falar.

Só me resta agradecer o trabalho árduo que o Guilherme Fonseca teve em escavar estes temas. Pobre coitado. 

"Acontece muito confundir-se um negacionista com um teórico da conspiracao, mas são conceitos diferentes. Um negacionista recusa-se a acreditar numa evidência, um teórico da conspiração preenche o vazio da falta de evidência com teorias inventadas. E diferente. Um negacionista diz: 《A covid não existe!. Um teórico da conspiração responde: 《Não isso é estupidez, a covid existe! Mas existe porque um laboratório 6chines recebeu dinheiro de um filho perdido do Tupac com o Elvis para espalhar a doença, porque os aliens querem mandar no mundo para comprarem um terreno em Estremoz para exploração de mirtilos. Essa é que é essa!》

Um teórico da conspiração é um negacionista, mas um negacionista pode não ser (ainda) um teórico da conspiração. No fundo, o negacionistas é a criança que se recusa a acreditar que o Telmo do 6. B deu um beijo a Cátia, apesar de os ter visto com a língua na boca um do outro depois da aula de Matematica. Um teorico da conspiracao é o que diz que o Telmo não deu o beijo a Cátia porque aquela Cátia é, na verdade, uma criatura de uma raça de lagartos humanóides que se infiltraram em lugares de poder pelo mundo para dominarem os humanos. Mas isso seria mais complicado de explicar, e agora é preciso ir ali perguntar ao Telmo a que e6 que sabe a língua da Cátia.
Quando um negacionista levanta questões sobre a veracidade de algo, o teórico da conspiração aparece com respostas estapafúrdias.
O negacionista levanta dúvidas que ninguém tem; o teórico traz as respostas de que ninguém se lembrou."

 

 

Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago

Charneca em flor, 17.01.23

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"O Evangelho segundo Jesus Cristo" é a obra mais polémica de José Saramago. A sua primeira edição data de 1991. A publicação causou enorme perturbação no país, não só nos sectores católicos como no governo e em grande parte da sociedade nacional. Aliás, este livro foi vetado pelo Secretário de Estado da Cultura como candidato ao Prémio Europeu da Literatura por não respeitar a moral cristã. Estes acontecimentos precipitaram a saída de José Saramago de Portugal para ir viver para a ilha espanhola de Lanzarote.

Este livro começa um pouco antes do nascimento de Jesus e termina com a sua morte mas o autor  conta a história de forma completamente diferente daquilo que é aceite pela doutrina da Igreja Católica. José Saramago cometeu a ousadia de humanizar a Sagrada Família das mais variadas formas. Para além disso, o deus retratado por José Saramago é cruel, irascível e vingativo. Ao contrário daquilo que dizem as Sagradas Escrituras, este Jesus é um homem frágil, cheio de dúvidas e que, em vez de se sacrificar voluntariamente para salvação dos homens, se sente ludibriado por Deus,

Se não tivesse sido proposto no grupo de Leitura Conjunta de Saramago, talvez nunca tivesse pegado neste livro. A visão que José Saramago tem sobre Deus e sobre a religião é totalmente diferente da minha forma de olhar estes temas. Se fosse interpretar este livro, apenas, à luz da doutrina cristã não teria sido capaz de o ler. No entanto, aqui não se trata de doutrina, mas de literatura. E esta é uma obra magnífica, sem sombra de dúvida. Li este livro com grande prazer porque, mesmo conhecendo as linhas gerais desta história, fiquei fascinada com a forma como José Saramago construíu este evangelho alternativo. 

Ao contrário de "Caim" de que não gostei especialmente e até me chocou nalgumas passagens, "O Evangelho segundo Jesus Cristo" não me chocou de forma nenhuma, nem sequer nas passagens que se referem à concepção de Jesus ou à sua relação com Maria Madalena. Mesmo que Jesus Cristo tivesse sido mais humano e menos divino, eu continuaria a acreditar na Sua presença na minha vida.

Seja como fôr, este livro é um dos melhores que José Saramago escreveu e faz parte dos melhores livros que li em 2022.

"Está visto que as pessoas não andam todas por aí a pedir milagres, cada um de nós, com o tempo, habitua-se às suas pequenas ou medianas mazelas e com elas vai vivendo sem que alguma vez lhe passe pela cabeça importunar os altos poderes, mas os pecados são outra coisa, os pecados atormentam por baixo do que se vê, não são perna coxa nem braço tolhido, não são lepra de fora, mas são lepra de dentro. Por isso tinha tido Deus muita razão quando a Jesus disse que todo o homem tem pelo menos um pecado de que se arrepender, e o mais corrente e normal é que tenha muitíssimos."

Daqui fala o Sam, Dustin Thao

Charneca em flor, 11.01.23

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"Daqui fala o Sam" foi a escolha de Dezembro, da Joana da Silva, para o Clube do Livra-te. Aproveito já para esclarecer que tenho consciência de que não sou o público-alvo deste romance mas, nos últimos anos, tenho tentado diversificar as minhas leituras. As propostas do Livra-te são uma boa forma de ler livros que, de outra maneira, não me chamariam a atenção.

"Daqui fala o Sam" tem como personagem central, uma jovem de 17 anos, Julie Clarke. Como todas as jovens, Julie tem sonhos por realizar e projectos para concretizar, ao lado do seu namorado Sam. Até que tudo muda quando Sam morre num trágico acidente. A dor profunda que sente faz com queira "enterrar" as recordações que partilhara com Sam. No entanto, um dia resolve ligar para o telemóvel dele para ouvir, pela última vez, a mensagem de voicemail. Só que Sam atende a chamada e, de forma surpreendente, estabelece-se uma comunicação entre eles para que Julie se possa despedir. 

Não sendo um livro marcante, foi uma boa leitura. Na minha opinião, Dustin Thao descreveu bem a forma como um adolescente lida com a morte de alguém próximo, seja um namorado ou um amigo. A premissa de que o autor partiu é muito boa tendo em conta a relação que, hoje em dia, se estabelece com o telemóvel. Não tenho a certeza de que a ideia tenha sido bem concretizada uma vez que o autor deixou muitas pontas soltas e pormenores que mereciam um maior desenvolvimento. 

Nesta fase da minha vida, e embora me tenha comovido, esta história não me apelou tanto ao sentimento como seria de esperar. Se o lesse aos 18 anos, provocaria muitas lágrimas, com toda a certeza.

Seja como fôr, escrever sobre o tema do luto na adolescência parece-se muito meritório. Não seria bom que houvesse uma última oportunidade para nos despedirmos daqueles que amamos?!

"Não te preocupes. Temos todo o tempo do mundo para fazer isso. Todo o tempo do mundo... As palavras ecoam por mim enquanto uma aragem entra pela janela, volteando sobre a minha pele. Fito o relógio sobre a porta. Não tinha reparado nele antes. Faltam-lhe os ponteiros.
Lá fora continua a não haver nada além de nuvens reluzentes. Agora que penso nisso, há quanto tempo é que o sol se esta a pôr?

- Passa-se alguma coisa? - A voz do Sam traz-me de volta para ele. Pestanejo algumas vezes."

Jane Eyre, Charlotte Brontë

Charneca em flor, 30.12.22

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No mês de Novembro, ainda houve tempo para a leitura do clássico "Jane Eyre". Este livro foi escolhido pelos seguidores do Livra-te para leitura conjunta do penúltimo mês de 2022.

Conhecemos Jane Eyre como uma criança órfã e infeliz, acolhida pela viúva do seu tio. Jane Eyre cresce sem amor e carinho até que é enviada para um colégio interno onde a sua situação não é muito melhor mas adquire as ferramentas para se tornar, também ela, professora. Quando a sua amiga directora abandona o colégio depois de se casar, Jane Eyre resolve tentar a sorte como preceptora. Jane Eyre é contratada para Thornfield Hall de forma a ensinar a pequena Adèle, uma criança acolhida pelo taciturno Mr. Rochester.

A minha edição deste livro tem esta capa linda mas encontrei alguns erros na edição de texto. Nada que me impedisse de ficar encantada com este livro. Apesar de Charlotte Brontë contar uma história que se enquadra na época em que foi escrita, nas entrelinhas encontramos um pensamento à frente do seu tempo. As identidades femininas e masculinas têm características muito marcadas mas a nossa personagem central apresenta uma certa dualidade na maneira como decide os passos a tomar na sua vida. No séc. XIX era muito difícil a uma mulher subsistir sem familiares que olhassem por ela mas isso não impede Jane Eyre de ir à luta e tentar ser dona do seu destino. Embora este livro tenha cerca de 175 anos, percebe-se continuam a existir pessoas com as mesmas características das personagens deste romance, sejam femininas ou masculinas. Afinal, aquilo que nos torna aquilo que somos não depende das épocas mas atravessa os tempos.

"- Isso vai além dos poderes m6agicos, senhor. - E acrescentei, só para mim: 《Uns olhos apaixonados são todo o encanto necessário: para eles, és belo suficientemente; ou, por outra, a tua rudeza vale mais do que todas as belezas.》

O Sr. Rochester lera por vezes nos meus pensamentos com uma tal clareza que me parecia incompreensível. Desta vez, porém, nanão o reparou na breve resposta que eu lhe dera e pôs-se a sorrir, com um sorriso só dele, mas que só raramente lhe aparecia como se o achasse bom de mais para as ocasiões ordinárias; esse sorriso era um verdadeiro raio de sol... Senti-me iluminada, inundada, aquecida."

De Amanhã em Amanhã, Gabrielle Zevin

Charneca em flor, 27.12.22

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Este livro foi escolhido, no mês de Novembro pela Joana da Silva do Clube do Livra-te. Devo começar por dizer que, dificilmente, pegaria neste livro se não fosse o Clube do Livra-te. A capa é muito apelativa já que se trata de um pormenor do quadro "A Grande Onda de Kanagawa" de Katsushika Hokusai que até já passou por este blog.

Em "De Amanhã em Amanhã" encontramos Sam e Sadie. As suas vidas cruzam-se na infância, num hospital, por circunstâncias dramáticas. O principal interesse que partilham é a paixão pelos videojogos. Entre ambos surge uma forte amizade mas um mal entendido acaba por afastá-los. Até que se voltam a cruzar no início da vida adulta. Quer Sam quer Sadie continuam a adorar jogos de computador e estão na universidade. Sam convence Sadie a desenvolverem um jogo em conjunto e as suas vidas ficarão, irremediavelmente, ligadas.

"De Amanhã em Amanhã" lê-se muito bem e a leitura foi uma experiência agradável. Não me identifiquei com as personagens mas acabei por gostar desta história de amizade e amor pontuada por inúmeros equívocos.

Nunca fui grande apreciadora de jogos embora tenha tido as minhas fases de Sims, Farmville ou Angry Birds. Não sei se foi por isso mas não me senti muito cativada pelo contexto onde a história se insere nem percebi algumas das referências relacionadas com o universo do gaming. A autora situa a história no início dos anos 90 mas encontram-se algumas incongruências temporais nesse contexto histórico como, por exemplo, a alusão à identidade de género. Outro ponto menos positivo é a extensão do livro. Para contar esta história não eram necessárias tantas páginas. A autora pretende, de tal maneira, mostrar os problemas de comunicação entre as personagens centrais que repete várias vezes a mesma ideia. 

A construção das personagens centrais, Sam e Sadie, é um dos pontos positivos do livro. Adorei as suas personalidades ressentidas, com os seus defeitos e as suas dificuldades comunicacionais. Os diálogos são, também, um dos pontos fortes do livro.O final, para mim, foi o culminar perfeito para esta história. "De Amanhã em Amanhã" não entra nos meus livros preferidos de 2022 mas não deixa de ser uma boa leitura. Experimentem.

 

"- Concordo. Mesmo assim, ainda gostaria de voltar a fazer um jogo contigo, se alguma vez arranjares tempo.
- Achas que é boa ideia?
- Provavelmente não - admitiu Sam, com uma risada. - Mas quero fazê-lo na mesma. Não sei como deixar de querer. Sempre que te encontrar, para o resto das nossas vidas, vou pedir-te para fazeres um jogo comigo. Ha um sulco no meu cérebro que insiste que é boa ideia.
- Mas essa não é a definição de loucura? Continuar a repetir a mesma coisa, a espera de um resultado diferente?
- É também a vida da personagem de um jogo - disse Sam. - O mundo de reinícios infinitos. Recomeça do principio, desta vez talvez consigas ganhar. E nem todos os nossos resultados foram maus. Eu adoro as coisas que criámos. Éramos uma equipa fantástica."

 

A Caverna, José Saramago

Charneca em flor, 07.12.22

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Alguém do clube de leitura, Leituras Conjuntas de Saramago, já tinha mencionado este romance. Na altura não foi escolhido mas acabou por ser um dos livros propostos para o mês de Novembro. "A Caverna" fazia parte da minha biblioteca pessoal sem eu suspeitar da pérola que morava na minha estante. Este livro passou a fazer parte do Top 3 dos meus livros preferidos de José Saramago em conjunto com "as intermitências da morte" e "Ensaio sobre a cegueira". Cada um deles deve o seu lugar no meu coração por motivos completamente diferentes.

A figura central deste romance é Cipriano, um oleiro que, na sua olaria artesanal, produz peças de barro tradicionais. O seu principal cliente é o Centro, um gigantesco edifício comercial e habitacional, que se situa na cidade. Na olaria, Cipriano conta com a ajuda da sua filha, Marta, com a qual tem uma relação muito próxima. Logo no início acompanhamos a viagem de Cipriano desde à aldeia até ao Centro. A viagem serve dois propósitos, entregar uma encomenda das suas louças de barro e transportar o seu genro até ao Centro. Marçal trabalha naquele empreendimento como guarda e ambiciona ser promovido a guarda residente o que lhe daria o privilégio de viver, com a família, nos apartamentos do Centro. No entanto, Cipriano é confrontado com a diminuição do interesse comercial nos seus produtos colocando em risco a sua fonte de rendimento.

Neste romance, José Saramago leva-nos a reflecfir sobre o consumismo desenfreado, os malefícios da industrialização, a projecção de imagens falsas que alteram a percepção da realidade, o envelhecimento e consequente sentimento de inutilidade que muitas pessoas enfrentam quando o seu trabalho é considerado desnecessário. Ao mesmo tempo, o autor construiu personagens brilhantes, não só as personagens centrais (Cipriano, Marta, Marçal) mas também os outros elementos que vão aparecendo para ajudar a consolidar a história. Como o cão, Achado, que aparece na olaria e "decide" ficar com aquela família. O elemento canino repete-se em várias obras, como o inesquecível cão das lágrimas dos "Ensaios" ou o cão que reúne todas as personagens humanas n' "A Jangada de Pedra".

Na verdade, gostei tanto deste livro que nem consigo explicá-lo em palavras. De entre os inúmeros pormenores inesquecíveis, destaco a relação tão carinhosa e especial entre Cipriano e a filha Marta. Mesmo quando há algum conflito entre eles, o amor nunca deixa de estar presente bem como o entendimento mútuo. Nem que para isso seja necessário dar ao outro o espaço de que precisa. A figura do genro, Marçal, longe de ser um factor de discórdia, acaba por complementar, na perfeição, aquela família. No fundo, "A Caverna" mostra-nos que o amor é imensamente mais importante que os objectos que somos levamos a consumir.

Quase que sublinhei todo o livro porque José Saramago escreveu tantas frases e parágrafos maravilhosos que é difícil escolher só algumas. Apetece citar todas as páginas deste romance.

E porque será que se chama "A Caverna"? O título faz todo o sentido mas, para saberem que sentido é esse, têm que o ler.


"Estou a ficar surpreendida com o seu conhecimento destas matérias, Vivi, olhei, li, senti, Que faz aí o ler, Lendo, fica-se a saber quase tudo, Eu também leio, Algo portanto saberás, Agora já não estou tão certa, Terás então de ler doutra maneira, Como, Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar a outra margem, a outra margem e que importa, A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que le seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar, Bem observado, disse Cipriano Algor, mais uma vez fica demonstrado que não convém aos velhos discutir com as gerações novas, sempre acabam por perder, enfim, há que reconhecer que também aprendem alguma coisa, Muito agradecida pela parte que me toca,"

 

 

 

 

O Palácio de Papel, Miranda Cowley Heller

Charneca em flor, 29.11.22

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Quase que me esquecia de falar do último livro que li em Outubro. "O Palácio de Papel" foi uma das escolhas do passado mês do Clube do Livra-te da Rita da Nova e Joana da Silva. Este livro é o primeiro romance da autora. Miranda Cowley trabalhou na imprensa mas também foi produtora de séries televisivas de sucesso.

A acção d' "O Palácio de Papel" decorre durante as vinte e quatro horas mais decisivas da protagonista Elle. Tudo começa numa manhã de Agosto enquanto Elle está de férias com a família no local de sempre, "O Palácio de Papel". Entrelaçadas, com as decisões que Elle sente que tem que tomar, estão as suas recordações mais felizes mas também as mais dolorosas e dramáticas. Através desses recuos vamos percebendo com é que a vida da protagonista chegou ali, ao momento em que terá de decidir a segurança de um amor adulto ou a quimera do primeiro amor.

Gostei muito deste livro, a história é fantástica, e surpreendente nalguns pontos  e as personagens foram muito bem construídas, embora umas mais realistas do que outras. A personagem que mais me encantou foi Wallace, a mãe de Elle. E adorei a relação entre ela e o genro, Peter. Que diálogos deliciosos. Só achei que a organização dos capítulos e nomes atribuídos a cada capítulo não tinham muita lógica induzindo alguma confusão no leitor. 

A escrita de Miranda Cowley Heller é muito cinematográfica e gostaria de ler mais romances escritos por ela. Não vai para a lista dos livros com 5  mas fica perto.

 

"Largo o robe para o chão e fico nua a beira da água. No outro lado da lagoa, além dos pinheiros e dos arbustos, o oceano ruge, furioso.Deve trazer uma tempestade no seu âmago, chegada de algures no mar alto. Mas aqui, a beira da lagoa, o ar continua calmo e sereno. Espero, observo, escuto... os piados, o zumbir dos pequenos insetos, um vento que agita suavemente as folhas das arvores. Depois entro até aos joelhos e mergulho de cabeca na água gelida. Nado até fora de pé, além dos nenúfares, levada pelo entusiasmo, pela liberdade, pela adrenalina advinda de um pânico inexprimível. Tenho medo que uma tartaruga-mordedora chegue das profundezas e me trinque os seios pesados. Ou talvez seja atraída pelo cheiro a sexo que se liberta quando abro e fecho as pernas. De repente, sinto-me assoberbada pela necessidade de voltar a seguranca dos baixios, onde consigo ver o fundo arenoso. Quem me dera ser mais corajosa. Mas também adoro o medo, o fôlego que me fica preso na garganta, o coração aos saltos quando saio da água."

Carrie Soto está de volta, Taylor Jenkins Reid

Charneca em flor, 23.11.22

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Das leituras do mês de Outubro, fez parte este "Carrie Soto está de volta" escolhido pelo Clube do Livra-te. Taylor Jenkins Reid (TJR) é uma conhecida escritora norte-americana, com milhares de fãs em todo o mundo mas eu nunca tinha lido nada dela. Este livro faz parte de um conjunto de 4 romances* que podem ser lidos em separado mas que têm pontos de ligação entre eles.

Carrie Soto é uma tenista de alta competição, detentora de vários recordes internacionais que se retirou cedo devido a uma lesão. No início da história, acompanhamo-la enquanto assiste a uma partida da jovem tenista com maior capacidade para bater os seus recordes. Carrie Soto não consegue lidar com esse facto e resolve regressar à competição disposta a tudo fazer para não ser ultrapassada pelas tenistas mais jovens. 

Confesso que o início do livro não me estava a agarrar porque não me estava a conseguir identificar com a personagem. Carrie Soto é muito competitiva e ambiciosa  e eu não tenho essas características. Para além disso, achei um pouco entediante toda a explicação das regras deste desporto embora fosse necessário fazer esse enquadramento para um melhor entendimento da situação.

No entanto, a autora e as suas personagens acabaram por me conquistar. TJR é uma brilhante contadora de histórias e também constrói personagens com mestria. A relação com o pai, com altos e baixos, é enternecedora. Adorei a maneira como a autora finalizou toda a história. O livro tem uma organização muito dinâmica e a divisão dos capítulos, pelos torneios em que a personagem participa, faz-nos mergulhar facilmente no mundo do ténis.

Carrie Soto fez-me pensar que os desportistas de alta competição não têm vida fácil mesmo que venham a ter uma vida privilegiada e uma conta bancária recheada. E ser mulher desportista é ainda mais complexo porque não se respeitam as atletas de alta competição como se respeitam os homens na mesma situação. Para jogarem ao mais alto nível, seja em que desporto fôr, é necessário que os atletas prescindam de muitas coisas que nós, comuns mortais, damos como garantido. Regra geral, é preciso começar a trabalhar desde a infância e o ténis é uma das modalidades em que isso é muito frequente. Os tenistas com mais sucesso começam a praticar este desporto desde idades muito precoces. Enquanto estão no auge da carreira, têm o mundo e os fãs aos seus pés. E quando a carreira chega ao fim?! Deve ser muito difícil lidar com a ausência das ovações e das palmas. Por mais rodeados de amigos e família que estejam, é natural que experimentem uma sensação de solidão difícil de suportar.

Em resumo, "Carrie Soto está de volta" foi uma boa experiência. Valeu a pena o esforço de ultrapassar a overdose de ténis.

"Uma das grandes injustiças deste mundo virado do avesso em que vivemos é que se considera que as mulheres se vão desgastando com a idade e os homens vão ganhando algum tipo de profundidade." 

"Sinto-me tão grata neste momento por todos os jogos, todas as vitórias, todas as derrotas e todos os ensinamentos que trago na bagagem. Sabe-me tão bem ter 37 anos neste momento. Ter percebido pelos menos algumas coisas.
Conhecer a terra que piso." 

 

*Os sete maridos de Evelyn Hugo, Malibu renasce, Carrie Soto está de volta e Daisy Jones & The Six.

Caim, José Saramago

Charneca em flor, 15.11.22

No dia 16 de Novembro, se fosse vivo, José Saramago faria 100 anos. Nesse dia assinala-se o fim das comemorações do Centenário do único Prémio Nobel da Literatura português. Estas festividades foram o mote para a Leitura Conjunta de Saramago a que eu aderi desde a primeira hora. O Centenário já passou mas vamos continuar a ler os seus livros até ao fim do ano, pelo menos.

Em Outubro, o livro escolhido foi "Caim".

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O posicionamento de José Saramago perante a religião, nomeadamente a Igreja Católica, é conhecido. Na altura do seu lançamento, o livro e o seu autor foram alvos de inúmeras críticas do sector religioso, não só pelo conteúdo do livro, como também pelos comentários que José Saramago foi fazendo durante a divulgação deste romance.

Neste livro José Saramago parte da história de Caim, assassino do seu irmão Abel. O autor começa por redimir Caim ao apontar um autor moral do crime hediondo e continua analisando alguns dos acontecimentos mais violentos e sangrentos da Bíblia.

Uma das críticas que foram feitas a este livro foi a leitura literal da Bíblia utilizada por José Saramago no desenvolvimento da sua história. Confesso que isso também foi algo que me incomodou pela minha vivência religiosa e pela minha antiga ligação a grupos bíblicos. Não é a mesma coisa olhar para o Antigo Testamento com o intelecto ou com a fé. No entanto,  e tendo em conta que "Caim" é um romance de ficção, a criatividade do autor partiu da Bíblia mas ele era livre para seguir o caminho que bem entendesse.

Por outro lado, há algo de muito importante que retirei desta leitura e nem sei se era essa a intenção do autor. Refiro-me ao facto da maldade dos homens se justificar como sendo vontade de Deus. Ao longo da História, há inúmeros exemplos de atitudes humanas fundamentadas, erradamente do meu ponto de vista, na hipotética vontade de Deus. Quantos dos acontecimentos retratados no Antigo Testamento, sejam verídicos ou não, terão sido responsabilidade humana e não divina?

No encontro virtual para discussão do livro, uma das participantes perguntou se tínhamos gostado do livro. E eu não fui capaz de responder. Já terminei a leitura há 3 semanas e continuo sem ter uma opinião concreta. Não detestei mas também não adorei. "Caim" tem o dom de nos provocar questões nas quais não pensamos com frequência. A fina ironia tão característica de José Saramago está presente e ainda me fez rir algumas vezes. No entanto, não gostei da misturada de eventos bíblicos que o autor construiu neste pequeno livro. Parece que "abanou" a Bíblia e as histórias ficaram todas misturadas. Não sei como é que alguém que não conheça nada sobre a Bíblia compreenderá este livro.

"A eva e adão ainda restava a possibilidade de gerarem um filho para compensar a perda do assassinado, mas bem triste há-de ser a gente sem outra finalidade na vida que a de fazer filhos sem saber porquê nem para quê. Para continuar a espécie, dizem aqueles que crêem num objectivo final, numa razão última, embora não tenham nenhuma ideia sobre quais sejam e que nunca se perguntaram em nome de quê terá a espécie de continuar como se fosse ela a única e derradeira esperança do universo. Ao matar abel por não poder matar o senhor, caim deu já a sua resposta. Não se augure nada bom da vida futura deste homem."