A Jangada de Pedra, José Saramago
Já há muito que não dou notícias sobre a minha participação no clube de leitura dedicado aos livros de José Saramago dinamizado pela jovem jornalista Magda Cruz, autora do podcast Ponto Final, Parágrafo. Esta ausência deveu-se ao facto de eu ter já lido, recentemente, os livros escolhidos para os meses de Março e Abril que foram "ensaio sobre a cegueira" e "ensaio sobre a lucidez", respectivamente. Como tal resolvi não os reler porque ainda tinha as obras muito presentes.
No mês de Maio*, o livro proposto foi "A Jangada de Pedra". Curiosamente eu achava que também já o tinha lido mas não me lembrava de nada. Eu sei que alguém mo emprestou mas, ou não o li ou não o terminei. O que é certo é que senti que tudo era novidade para mim.
Imagem retirada daqui
Para dizer a verdade, não foi uma leitura fácil, antes pelo contrário. Terminei esta obra com muito esforço.
A premissa do livro é muito interessante. Por um estranho fenómeno que ninguém consegue explicar, abre-se uma fenda nos Pirenéus, a Península Ibérica separa-se do resto da Europa e começa uma viagem à deriva. Nesses dias há 5 pessoas, e 1 cão, às quais sucedem alguns acontecimentos que parecem ter relação, de alguma forma, com aquilo que se passa nos Pirinéus. Esses personagens vão encontrar-se e o leitor acompanha as relações que se estabelecem entre eles bem como a viagem que empreendem pela Península Ibérica enquanto esta continua à deriva.
Este livro foi publicado em 1986 e parece ser uma "resposta" de José Saramago à adesão, no ano anterior, de Portugal e Espanha à União Europeia, na época designada por Comunidade Económica Europeia, CEE. Presumo que o livro tenha começado a ser escrito antes da assinatura do Tratado de Adesão e, conhecendo o posicionamento político de José Saramago, imagino que o autor não fosse, de modo nenhum, favorável a esta adesão. Terá sido por isso que imaginou esta "fuga" da Península Ibérica?!
Em todos os livros de Saramago que tenho lido se nota alguma mensagem política mas senti que "A Jangada de Pedra" tem bastantes partes puramente políticas e penso que terá sido isso que tornou a leitura mais difícil do que é habitual. No entanto, sobressai, mais uma vez, o génio literário de Saramago uma vez que, tudo o que acontece às personagens (incluindo a Península Ibérica que também se torna personagem) durante o relato é extremamente imaginativo e tão bem argumentado que nos leva a acreditar que seria possível que Portugal e Espanha se transformassem numa gigantesca jangada de pedra navegando pelo Oceano Atlântico.
O que se volta a encontrar é o carácter algo premonitório da escrita de José Saramago. A dada altura da história, os jovens europeus fazem manifestações de apoio ao povo ibérico gritando "somos todos ibéricos", tal e qual o "somos todos Charlie" que surgiu nas redes sociais aquando do atentado à sede do jornal satírico "Charlie Hebdo" em 2015. E o que dizer desta passagem que faz lembrar as cidades vazias no início da pandemia:
"Mas quando nesta cidade, por avenidas, ruas e praças, por bairros e jardins, não se avistar já uma só pessoa, quando às janelas não se vir assomar um vulto, quando os canários que ainda não morreram de fome e sede cantarem no silêncio absoluto da casa ou na varanda para os quintais desertos, quando as águas das fontes e fontanários brilharem ao sol e mão nenhuma vier molhar-se nelas, quando os olhos das estátuas, mortos, girarem em redor a procura de olhos que os vejam, quando os portões abertos dos cemitérios mostrarem que não há diferença entre uma ausência e outra ausência, quando, enfim, a cidade estiver a beira de um agónico minuto esperando que uma ilha do mar a venha destruir, então é que acontecerá a história maravilhosa e miraculosa salvação do navegador solitário."
*comecei a lê-lo no fim de Maio mas só o terminei na primeira semana de Junho.