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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

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Açúcar Queimado, Avni Doshi

Charneca em flor, 01.03.22

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Este livro foi uma das sugestões do Clube do Livra-te para o mês de Fevereiro. "Açúcar Queimado" de Avni Doshi foi finalista do Prémio Booker no ano 2020. A história centra-se na estranha relação entre mãe, Tara, e a filha, Antara. A mãe começa a apresentar sinais de demência e a filha, apesar da relação conflituosa e tóxica entre ambas, sente-se na obrigação de a apoiar e de a acompanhar às consultas. Na tentativa de recuperar a memória da mãe, Antara revisita o passado de ambas e revive todo o sofrimento que as decisões da mãe lhe causaram.

Apesar dos constantes "saltos" na história, o relato é fácil de seguir uma vez que a escrita de Avni Doshi é fluída e acessível. Há um ou outro momento mais parado mas a história desenrola-se a um bom ritmo, maioritariamente.

"Açúcar Queimado" é um bom livro, gostei mas não adorei. Não sei dizer porquê mas faltou qualquer coisa que me impediu de mergulhar na história. Talvez tenha sido porque não me sinto muito atraída pela cultura indiana que serve de enquadramento à história ou porque as patologias ligadas à demência me assustam de tal maneira que não gosto muito de pensar sobre elas. A verdade é que "Açúcar Queimado" faz-nos olhar, de frente, para esta problemática e esse olhar assustou porque tenho muito medo de que eu, ou algum familiar, venha a sofrer destas doenças. Por outro lado, há livros que surgem na nossa vida numa altura em que não estamos preparados para os lermos. Provavelmente foi isso que aconteceu comigo e com esta obra.

A história de Tara e Antara fez pensar num pormenor interessante. Muitas vezes, no meu quotidiano como farmacêutica, e quando acompanho algumas situações familiares dos meus utentes, tiro algumas conclusões precipitadas sobre o acompanhamento que os filhos prestam ou não aos pais idosos. Na verdade não sei nada sobre o passado daquelas pessoas. Será que, às vezes, os filhos não terão alguma razão para não acompanhar os pais como nos parece lógico quando olhamos de fora? Será que os pais não cometeram erros suficientemente graves que afectaram o crescimento dos filhos a ponto de isso os acompanharem pela vida fora?

Mais um livro que me pôs  a pensar. E, no fundo, só por isso valeu a pena aceitar esta sugestão da Rita da Nova.


"- A realidade é algo de que somos coautores - responde a mulher. - É natural que comece a achar tudo isto perturbador. Quando alguém nos diz que uma coisa não é como pensamos, pode provocar-nos leves vacilações no cérebro, alterações na atividade cerebral, e trazer a tona dúvidas que estavam no sub-consciente. Por que razão crê que as pessoas têm despertares espirituals? É porque quem nos rodeia está empenhado em acreditar. O delirio é uma descarga contagiosa."

"Olhava em redor e ouvia as muitas vozes e via os muitos corpos que pareciam compor uma forma gigante, um gigante maior do que o Baba, mas um espelho do que ele era, um conjunto de tantos desejos. Eu sabia que esses desejos existiam, que eram suficientemente poderosos para controlar padrões climáticos e causar inundações todos os anos, mas não conseguia perceber como funcionavam, como eram distribuídos e guardados diante de mim. O desejo dos adultos era uma coisa que eu ainda não compreendia. Não havia lugar para mim junto dele e nenhum sítio para onde ir. Por isso, deixava o prato à minha frente, de vez em quando observava os sentimentos que nele pusera, vendo-os crescer. Um dia, misturei-os com a comida e engoli-os inteiros."