Desafio Arte e Inspiração #9
Mentes perturbadas
João não tinha muitos amigos. Sempre fora um miúdo estranho. O amor extremo que a mãe lhe devotava nunca a deixou perceber que o seu filho não era igual às outras crianças. Aos seus olhos, o seu filho era perfeito. Durante muitos anos, esperara por ele que só chegara quando já não contavam que pudesse acontecer.
Quando João nasceu, os pais já estavam casados há 15 anos. Aquela criança era a realização de um sonho. De tão imaginado e desejado, João tornara-se num menino da mamã. O pai, pessoa introvertida, colocara-se sempre à margem do seu crescimento. Não é que não o amasse, mas não conseguia penetrar naquela simbiose perfeita entre mãe e filho. Também ele jamais suspeitara que algo no interior da mente do seu filho não funcionava da maneira que seria expectável.
Os anos foram passando e o João foi crescendo sem sair muito debaixo da asa da mãe. Na escola ficava sempre sentado perto da professora e nunca saía para o recreio. A interacção com as crianças da sua idade era mínima. Na verdade, João era incapaz de olhar os outros nos olhos e pouco falava. No entanto, era o aluno que tinha os melhores resultados desde que não fosse preciso falar com ninguém. A mãe, quando interpelada pela professora, conseguia arranjar sempre justificações. Obviamente, que ela já tinha reparado que João tinha muita dificuldade em olhá-la de frente. Aliás, às vezes até achava que o seu filho ficava de olhar vazio, perdido nos caminhos tortuosos da sua mente. Só que, para si, a natureza do seu filho era assim, calado e tímido, e a ela restava-lhe aceitá-lo e amá-lo.
Nada preparara aqueles pais para aquilo que estava por vir. Certa noite, acordaram com um estranho barulho que vinha do telhado. Com o medo a dominá-los, avançaram pelo corredor em direcção à porta. Não se aperceberam que o filho não estava na cama. Com cautela, saíram para o pátio descobrindo que o filho se equilibrava em cima do telhado enquanto gritava palavras incompreensíveis.
A mãe começou a chorar compulsivamente porque já estava a imaginar o filho morto no chão do pátio.
- João, o que estás aí a fazer? Como é que foste aí parar? – o pai, embora assustado, tentava manter-se calmo.
- Pai, ajuda-me. Eu preciso de chegar ali a cima.
- Ali, onde?
- Ao céu. Tenho que ajudar aquele cabelo.
Cabelo perseguido por dois planetas, Joan Miró
- Mas que cabelo? Do que estás a falar? Não é melhor saíres daí? Eu vou ter contigo para te tirar daí.
- Não. – o grito de João foi lancinante. – Eu tenho que ajudar o pobre cabelo. Não vês aqueles dois planetas? Estão a persegui-lo, coitadinho.
Efectivamente, no céu observava-se um fio de luz, rasto de algum avião, mas o pai não estava a compreender nada do que o filho dizia.
O barulho acordara os vizinhos e alguém tomara a iniciativa de ligar para o serviço de socorro. No fundo da rua, surgiram uma ambulância e um carro de bombeiros.
João continuava a gritar coisas sem nexo e a tentar erguer-se no cimo do telhado. A mãe, desesperada, tomou consciência de que o seu filho não era perfeito. A sua mente estava irremediavelmente desarrumada. Quando os bombeiros o conseguiram fazer descer, os pais tiveram que aceitar que o seu filho precisava de ajuda médica. E, abraçados, choraram a “morte" de um filho que nunca existiu, o filho de sonho.
Neste desafio de inspiração artística, participam estes criativos Ana D., Ana de Deus, Ana Mestre, bii yue, Bruno Everdosa, Célia, Cristina Aveiro, Fátima Bento, Imsilva, João-Afonso Machado, José da Xã, Luísa De Sousa, Maria, Maria Araújo, Mia, Olga, Peixe Frito, Sam ao Luar, SetePartidas