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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

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Desafio Arte e Inspiração V2.0, semana #2

Fado, José Malhoa

Charneca em flor, 29.09.22

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José Arnaldo era uma figura mítica de Alfama. Com um bigode trocista e andar gingão, percorria o bairro várias vezes ao dia. Ninguém sabia bem como ele se governava porque ninguém o via trabalhar. Cada vez que punha a mão no bolso, saía de lá um grosso maço de notas com que distribuía rodadas por aqueles que se arrastavam pelos bancos corridos das tabernas. Ao serão, era mestre na guitarra portuguesa, os mais talentosos fadistas de Alfama não o dispensavam. O sorriso malandro conquistava inúmeros corações femininos. Quando ele passava, assobiando, era vê-las a correr para as janelas. Ah, quantos corações partidos mas ele nunca caía nessa armadilha. Ele queria continuar livre como os passarinhos nos beirais dos telhados.

Naquela manhã, o seu coração palpitou acelerado. Na sua frente estava a mulher mais bela que ele alguma vez vira. José Arnaldo vislumbrou-a quando saía de um belo automóvel estacionado à entrada de uma rua estreita. A mulher caminhava de braço dado com um figurão enfatuado, qual pavão em rito de acasalamento. Os dois desconhecidos encaminhavam-se para uma daa casas secundados por um pobre motorista carregado de malas.

Sorrindo, tirou o chapéu e cumprimentou o casal. O homem correspondeu embora com desdém e ela sorriu timidamente, baixando a cabeça.

Os dias foram passando e os passos de José Arnaldo conduziam-no àquela rua estreita. Ele bem assobiava e cantava, apesar de estar longe de ser um rouxinol. Todas as janelas se abriam menos aquela que ele mais desejava. José Arnaldo descobrira, pela vizinha do lado, que ela se chamava Maria das Dores e estava cada vez mais obcecado a misteriosa mulher. A vizinhança partilhava da sua curiosidade e já se tinha apurado que o figurão com quem ela chegara era do governo. Através da senhoria, soubera-se que ele tinha pago 6 meses de renda adiantados. José Arnaldo depressa se apercebeu da rotina daquela casa. Maria das Dores saía ao sábado à tarde para ir lanchar à leitaria da praça e ao domingo para ir à missa. Os víveres eram-lhe entregues em casa pelo moço de recados da mercearia. José Arnaldo já tinha conversado com o miúdo que lhe contara que ela cantava muito bem. Ouvia-a cantar antes de bater à porta. O homem que a sustentava aparecia sempre nos mesmos dias da semana, ao fim da tarde e ficava até à meia-noite.

José Arnaldo engendrou um plano para a fazer aparecer. A ideia surgira-lhe quando ouviu a vizinha do lado contar que a jovem cantava o fado como ninguém.

- Como é que sabe isso, Sra. Josefa? A sua vizinha nunca se deixa ver. – perguntou José Arnaldo.

- Ouço-a do meu quintal porque as janelas das traseiras estão sempre abertas de par em par. E olha que ela canta melhor que muitas cantadeiras com quem tu tocas, meu rapaz.

Numa noite em que Maria das Dores não recebia o “amigo", José Arnaldo, munido da sua guitarra portuguesa, plantou-se debaixo da janela e cantou o fado, com mais emoção do que talento. Todos os moradores se assomaram às portas e janelas e apreciaram o espectáculo. O vulto dela via-se através das cortinas.  O apelo do trinado da guitarra foi mais forte e ela apareceu, cantando aquele fado com ele, e depois outro e mais outro. Toda a noite se tocou e cantou na rua mais estreita de Alfama. Os corações dos dois inflamavam-se de paixão e eles ficaram presos pelo olhar. A magia só se quebrou quando um vizinho rabugento lembrou que o dia seguinte era de trabalho: “ Há aqui quem queira dormir, seus malandros.”. Todos se recolheram. Maria das Dores abriu a porta e deixou José Arnaldo entrar. A partir daquela noite, o marialva ficou preso a uma só mulher.

Nos dias em que o figurão não aparecia, era José Arnaldo que aquecia a cama de Maria das Dores. Durante meses, tudo correu de feição mas as desconfianças foram-se instalando no ricaço. Num dia em que não era esperado, apareceu e apanhou os dois amantes nos lençóis que ele mesmo comprara. Seguiu-se uma cena de faca e alguidar com José Arnaldo e Maria das Dores a serem escorraçados para o meio da rua quase nus. Nada que surpreendesse os moradores do bairro.

Traidor que traí traidor tem cem anos de perdão. O figurão já tinha mulher mas prometera casamento a Maria das Dores para a convencer a abandonar a aldeia. No bairro todos gostavam de José Arnaldo. Os moradores humildes daquelas ruas tinham-se apaixonado pela voz de Maria das Dores e pela sua história. Ela foi aceite como se sempre tivesse sido do bairro. Em pouco tempo, tornou-se na cantadeira mais apreciada da cidade e mesmo do país. A casa de fados enchia-se todas as noites. Ela nunca mais voltou para a aldeia e eles viveram a paixão mais incendiária que aquele bairro alguma vez conheceu.

 

Com algumas horas de atraso mas cá está o texto escrito no âmbito do Desafio de escrita Desafio de Escrita Desafio Arte e Inspiração V2.0 lançado pela querida e inexcedível Fátima Bento e no qual participam, para além da Fátima e desta que vos escreve, os seguintes brilhantes autores: Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCéliaCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas,

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