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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

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Desafio Arte e Inspiração V2.0, semana #3

The Lady off Shalott, John William Waterhouse

Charneca em flor, 05.10.22

A sua alma estava tão sombria como aquele recanto do rio. A dor que sentia oprimia-lhe o peito e impedia-a de respirar.

Sempre que estava triste, Madalena refugiava-se ali. Olhar para a corrente, acalmava-lhe o coração. A constante renovação da água que passava ajudava-a a acreditar que, fosse qual fosse o seu problema, a solução iria surgir tão clara e límpida como o rio.

Desta vez, nada acalmava Madalena. Não conseguia impedir as lágrimas que lhe molhavam o rosto. Nunca tinha conhecido um tal sofrimento.

A jovem sentira-se diferente desde criança. Embora se sentisse amada pela família, a população da sua aldeia ribeirinha olhava para ela com desconfiança. Os seus cabelos ruivos causavam estranheza e receio por serem tão pouco frequentes. Os aldeões associavam a cor dos seus cabelos ao fogo do inferno, acreditavam que Madalena transportava o mal no seu coração. Na verdade, a jovem nunca se tinha apercebido muito dessa animosidade para com ela porque a família sempre a tinha protegido.

A razão destes sentimentos incompreensíveis, iniciados logo quando ela nascera, tinha a sua origem num passado distante. Há muitas dezenas de anos, existira outra ruiva na família, Helena de seu nome. O quadro que a retratava estava pendurado na biblioteca da quinta.

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A antepassada de Madalena sofria de distúrbios psiquiátricos graves, num tempo em que essas situações eram justificadas por motivos muito pouco científicos. No caso de Helena fora a própria família a alimentar os rumores de que ela estava possuída pelo demónio. As tentativas de exorcismo foram constantes mas todos os sacerdotes saíam derrotados de tais sessões. O seu estado psicológico foi-se agravando até ela se ter suicidado. Ou pelo menos fora isso que se pensara já que o seu corpo nunca fora encontrado. Helena também gostava muito de se isolar junto ao rio, perto do ancoradouro. Nunca se teve a certeza do que aconteceu no dia em que ela desapareceu. O primeiro sinal de alarme fora o fogo. As árvores nas margens do rio tinham-se incendiado sem se perceber como. A população da aldeia e os empregados da quinta conseguiram controlar o fogo antes que chegasse às casas mas grande parte das colheitas tinha-se perdido, irremediavelmente. Só depois se deu pela ausência de Helena. O pequeno barco, habitualmente ancorado, fora encontrado no meio do rio sem ninguém lá dentro por isso concluíra-se que ela se tinha lançado ao rio para se afogar depois de provocar o incêndio . Os aldeões acreditavam que o seu fantasma nunca abandonara a margem do rio e afirmavam ouvir o seu choro aflitivo em dias de nevoeiro tão sufocante como o fumo de um fogo ardente.

Quando se soubera que voltara a nascer uma menina ruiva naquela família, depressa correu a notícia de que Madalena era uma reencarnação de Helena. Os seus entes queridos não alimentavam estas superstições mas tinham muito receio da maldade das pessoas por isso evitavam que ela tivesse contacto com as pessoas da aldeia. Madalena regressara à aldeia para as férias de Verão depois de mais um ano lectivo no colégio. Quando o automóvel passou próximo da aldeia, Madalena percebeu que havia mais movimento e animação do que era habitual. A aldeia estava em festa honrando a santa padroeira. A jovem ficou curiosa. Não fazia ideia de como seria tal festividade. A brisa de Verão transportava o som da música até à sua janela. Nunca percebera porque é que os seus pais não queriam que ela fosse à aldeia. A curiosidade superou o respeito às determinações dos pais e caminhou até à aldeia. Nada a preparara para o horror que leu nos rostos de quem a olhava. Ela passava, as pessoas escondiam as crianças e corriam a fechar-se em casa. Um rumor de vozes foi aumentando até ela perceber que as pessoas diziam: “bruxa", “possuída”, “fora daqui", “desaparece", “não te queremos aqui". Alguém atirou a primeira pedra e todos se seguiram. Madalena foi apedrejada e escorraçada da aldeia. Não compreendia o que se passava mas correu o mais que pode para fugir dali. Percebeu que as pessoas tinham medo dela e sentiu-se mais sozinha do que nunca.

Nem a beira do rio a conseguiu acalmar. Olhou para o pequeno barco no ancoradouro e teve vontade de fazer como a sua antepassada Helena, lançar-se ao rio e desaparecer.

 

Este texto foi escrito no âmbito do Desafio de escrita Desafio de Escrita Desafio Arte e Inspiração V2.0 lançado pela querida e inexcedível Fátima Bento e no qual participam, para além da Fátima e desta que vos escreve, os seguintes brilhantes autores: Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCéliaCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas,

 

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