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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Mais uma voz que se cala

Charneca em flor, 27.04.14

Hoje Portugal perdeu um grande homem da cultura, Vasco Graça Moura. Ele utilizou o dom da palavra de múltiplas

formas, umas mais eruditas, outras mais populares.  Em 1963 publicou o seu primeiro livro do poesia, "Modo mudando", ao qual se seguiram muitos outros. Também publicou vários romances e também ensaios, estes dedicados a Camões.  Vasco Graça Moura dedicou-se, com êxito, à tradução nomeadamente de poesia como, por exemplo, os sonetos de Shakespeare. Foi pelo seu trabalho que nos chegaram, em português, obras como A Divina Comédia de Dante. A língua portuguesa muito lhe deve. Era um acérrimo opositor ao Novo Acordo Ortográfico e, nem que fosse só por isso, já merecia o meu apreço. Felizmente o seu trabalho foi reconhecido ainda em vida já que recebeu inúmeros prémios como sejam o Prémio Pessoa em 1995 ou o Prémio Tradução do Ministério da Cultura de Itália em 2007. Recentemente foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada. Para além do trabalho intelectual que já referi, também foi desafiado por Carlos do Carmo para escrever letras para fado. Carminho e Mísia já cantaram poemas dele. 

Também foi político tendo deempenhado funções como secretário de estado por 2 vezes em governos provisórios  a seguir ao 25 de Abril de 1974 e deputado europeu de 1999 até 2009. Esteve à frente de várias instituições como a Imprensa Nacional - Casa da Moeda e de Comissões como a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Actualmente, presidia à Fundação Centro Cultural de Belém. 

 

Aqui fica um dos seus poemas, Lamento para Língua Portuguesa (é longo mas vale a pena ler)

 

Não és mais do que as outras, mas és nossa, 

e crescemos em ti. nem se imagina 

que alguma vez uma outra língua possa 

pôr-te incolor, ou inodora, insossa, 

ser remédio brutal, mera aspirina, 

ou tirar-nos de vez de alguma fossa, 

ou dar-nos vida nova e repentina. 

mas é o teu país que te destroça, 

o teu próprio país quer-te esquecer 

e a sua condição te contamina 

e no seu dia-a-dia te assassina. 

mostras por ti o que lhe vais fazer: 

vai-se por cá mingando e desistindo, 

e desde ti nos deitas a perder 

e fazes com que fuja o teu poder 

enquanto o mundo vai de nós fugindo: 

ruiu a casa que és do nosso ser 

e este anda por isso desavindo 

connosco, no sentir e no entender, 

mas sem que a desavença nos importe 

nós já falamos nem sequer fingindo 

que só ruínas vamos repetindo. 

talvez seja o processo ou o desnorte 

que mostra como é realidade 

a relação da língua com a morte, 

o nó que faz com ela e que entrecorte 

a corrente da vida na cidade. 

mais valia que fossem de outra sorte 

em cada um a força da vontade 

e tão filosofais melancolias 

nessa escusada busca da verdade, 

e que a ti nos prendesse melhor grade. 

bem que ao longo do tempo ensurdecias, 

nublando-se entre nós os teus cristais, 

e entre gentes remotas descobrias 

o que não eram notas tropicais 

mas coisas tuas que não tinhas mais, 

perdidas no enredar das nossas vias 

por desvairados, lúgubres sinais, 

mísera sorte, estranha condição, 

mas cá e lá do que eras tu te esvais, 

por ser combate de armas desiguais. 

matam-te a casa, a escola, a profissão, 

a técnica, a ciência, a propaganda, 

o discurso político, a paixão 

de estranhas novidades, a ciranda 

de violência alvar que não abranda 

entre rádios, jornais, televisão. 

e toda a gente o diz, mesmo essa que anda 

por tal degradação tão mais feliz 

que o repete por luxo e não comanda, 

com o bafo de hienas dos covis, 

mais que uma vela vã nos ventos panda 

cheia do podre cheiro a que tresanda. 

foste memória, música e matriz 

de um áspero combate: apreender 

e dominar o mundo e as mais subtis 

equações em que é igual a xis 

qualquer das dimensões do conhecer, 

dizer de amor e morte, e a quem quis 

e soube utilizar-te, do viver, 

do mais simples viver quotidiano, 

de ilusões e silêncios, desengano, 

sombras e luz, risadas e prazer 

e dor e sofrimento, e de ano a ano, 

passarem aves, ceifas, estações, 

o trabalho, o sossego, o tempo insano 

do sobressalto a vir a todo o pano, 

e bonanças também e tais razões 

que no mundo costumam suceder 

e deslumbram na só variedade 

de seu modo, lugar e qualidade, 

e coisas certas, inexactidões, 

venturas, infortúnios, cativeiros, 

e paisagens e luas e monções, 

e os caminhos da terra a percorrer, 

e arados, atrelagens e veleiros, 

pedacinhos de conchas, verde jade, 

doces luminescências e luzeiros, 

que podias dizer e desdizer 

no teu corpo de tempo e liberdade. 

agora que és refugo e cicatriz 

esperança nenhuma hás-de manter: 

o teu próprio domínio foi proscrito, 

laje de lousa gasta em que algum giz 

se esborratou informe em borrões vis. 

de assim acontecer, ficou-te o mito 

de haver milhões que te uivam triunfantes 

na raiva e na oração, no amor, no grito 

de desespero, mas foi noutro atrito 

que tu partiste até as próprias jantes 

nos estradões da história: estava escrito 

que iam desconjuntar-te os teus falantes 

na terra em que nasceste, eu acredito 

que te fizeram avaria grossa. 

não rodarás nas rotas como dantes, 

quer murmures, escrevas, fales, cantes, 

mas apesar de tudo ainda és nossa, 

e crescemos em ti. nem imaginas 

que alguma vez uma outra língua possa 

pôr-te incolor, ou inodora, insossa, 

ser remédio brutal, vãs aspirinas, 

ou tirar-nos de vez de alguma fossa, 

ou dar-nos vidas novas repentinas. 

enredada em vilezas, ódios, troça, 

no teu próprio país te contaminas 

e é dele essa miséria que te roça. 

mas com o que te resta me iluminas. 

 

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"