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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

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"O Retorno" Dulce Maria Cardoso

Charneca em flor, 03.08.20

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Já tenho mencionado que leio poucos livros de autoras portuguesas. Tinha alguma curiosidade em ler Dulce Maria Cardoso porque gosto muito das crónicas que ela escreve para a revista Visão. Este livro foi, realmente, uma boa aposta para me iniciar na obra desta escritora e para despertar em mim a vontade de ler mais livros dela. "O Retorno" transporta-nos para 1975, para um momento da nossa História com o qual a maioria dos portugueses ainda não se reconciliou, na minha opinião. Refiro-me ao regresso daqueles a quem se convencionou chamar "retornados".

A própria autora passou por essa experiência uma vez que, embora tenha nascido em Trás-os-Montes, foi para Angola com 6 meses de vida e também voltou em 1975.

Imagino que Dulce Maria Cardoso tenha partido das suas memórias, e também de alguma investigação presumo, para construir esta narrativa. A figura central da história é Rui, um adolescente de 15 anos que se vê na contingência de vir para a "metrópole" com a família. Tal como milhares de portugueses, Rui e a família não têm para onde ir e acabam por ficar a viver num hotel de 5 estrelas no Estoril. Acompanhamos os últimos momentos de Rui em Angola, o aeroporto antes de embarcarem para Lisboa, a chegada ao hotel e toda a experiência da vida nesse ambiente repleto de pessoas na mesma situação. A autora consegue fazer-nos sentir, através das suas palavras, todas as dificuldades que estas pessoas sentiram. Eram olhadas como estrangeiras no seu próprio país. É uma história dura e difícil de lidar. No entanto acho que, devido a tudo o que temos vivido nos últimos tempos, escolhi o momento ideal para ler este romance. Fez-me olhar de outra forma para o racismo latente na nossa sociedade. O que se vive hoje tem, provavelmente, raízes neste passado recente.

Para além do interesse no tema central d' "O Retorno", a escrita de Dulce Maria Cardoso é brilhante. A maneira como ela escreve um diálogo é muito curiosa. Não utiliza uma única vez os sinais de pontuação típicos dos diálogos mas conseguimos perceber, sempre, que se trata de uma conversa. Também gostei muito da utilização de alguns termos angolanos que eu desconhecia.  Estas palavras tornam o texto ainda mais rico. Aliás sempre achei que as particularidades de cada povo falante de Língua Portuguesa é que a tornam interessante. Muito mais do que a implementação de um qualquer acordo ortográfico.

"E eu tenho tanto medo. Não quero ter medo mas tenho. Se o pai não chega até ao dia da independência é porque não chega mais, é porque não chega mais, é porque está, porque está morto. Ouviste. Sejas tu quem fores desta vez é a sério, não é como os jogos que fazia antes. Se o pai não chega até ao dia da independência mataste o pai, se o pai não chega até ao dia da independência é porque quiseste mandar os cabrões dos pretos matar o pai. Sejas tu quem fores, tens de me ouvir, não estou a brincar. Não me vais deixar à espera para sempre."