A Hora da Estrela, Clarice Lispector
Quando, em 2019, li o livro de contos "Laços de Família" de Clarice Lispector nunca imaginei que ia demorar tanto em tempo a voltar a pegar numa obra desta escritora brasileira. No passado mês de Março, "A Hora da Estrela" foi o livro escolhido por um dos meus clubes de leitura, o Clube de Leitura do podcast Ponto Final, Parágrafo.
Nessa altura enfrentava um problema de saúde que me dificultava a leitura de forma tradicional por isso optei pelo audiolivro. A narração é feita pela actriz brasileira Mel Lisboa que eu já conheci de uma audiosérie do Spotify. A excelente dicção e a interpretação de Mel Lisboa tornaram esta experiência muito mais enriquecedora.
Se a escrita de Clarice Lispector já me tinha fascinado anteriormente, este romance/ novela ajudou a consolidar a minha opinião sobre a autora. O que ela faz com as palavras da nossa língua comum é magia mas a história e a maneira como a estruturou elevam a qualidade deste livro
A "voz" que conta a história é de um escritor (o seu alter ego, talvez) que se propõe a contar a triste história de Macabéa, uma jovem nordestina humilde, ignorante e ingénua. Clarice Lispector utiliza esta desgraçada personagem para se debruçar sobre a pobreza, as injustiças sociais ou as consequências da deficiente instrução que tantos anos depois* continuam a ser uma constante no Brasil e um pouco por todo o mundo.
Não sei se me deixei cativar mais pela história ou mais pela tapeçaria cerzida pelas palavras de Clarice Lispector. Para mim é um mistério como é que algumas pessoas têm a capacidade de fazer arte literária utilizando os mesmos vocábulos que qualquer outra pessoa.
Para quem só conhece as suas citações, amplamente partilhadas, não deixe de se deslumbrar com a escrita que se estende para lá das frases mais conhecidas.
"Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria.
Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudo substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordai? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem poderia mordê-lo, morrendo de fome. "
*Este romance foi publicado, pela primeira vez, em 1977