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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Mãe, Doce Mar, João Pinto Coelho

Charneca em flor, 28.06.23

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"Mãe , Doce Mar" foi um dos lvros do Clube de Leitura do Livra-te no mês de Fevereiro. Embora já tenha passado algum tempo desde que o li, acho que ainda vou a tempo de partilhar o quanto gostei deste livro. Já conhecia o talento deste autor através do "Perguntem a Sarah Gross" e tinha muita curiosidade em ler outros livros dele. No entanto, este livro foge dos temas habituais que inspiram João Pinto Coelho. 

 

A personagem central de "Mãe, Doce Mar" é o jovem Noah que conhecemos aos 12 anos quando, depois de viver a infância num orfanato, conhece a mãe num aeroporto. Pouco tempo depois, Noah vai viver com a mãe e a sua existência divide-se entre Cape Cod, onde passam o Verão, e Connecticut. A relação entre os dois é feita de silêncios e mistérios como uma estrada que nenhum dos dois consegue atravessar. Na sua existência, repleta de segredos, cruza-se uma personagem peculiar com quem desenvolve uma amizade improvável, Frank O' Leary, um padre jesuíta.

O livro está organizado em várias partes. Em cada uma vamos antevendo alguns momentos do passado destas personagens que, no fim, nos ajudarão a unir as pontas que o autor foi deixando soltas para desvendar o mistério que envolve a existência de Noah.

"Mãe, Doce Mar" é uma história em que percebemos que o amor tem caminhos muito tortuosos, por vezes solitários, e que cada um aprende a lidar com os seus fantasmas de uma forma ou de outra. O final é inesperado mas genial.

A escrita maravilhosa de João Pinto Coelho é um dos pontos fortes do livro mas a forma como ele o desenvolveu é brilhante. É impressionante como, em menos de 200 páginas, o autor nos consegue arrebatar. É possível entregar uma boa história ao leitor de forma sucinta.

Adorei e recomendo vivamente.

"Sim, desisto-me!

A renúncia é a poesia que me prova a eternidade. Talvez Deus seja só isso, o alforge de moedas que largo na beira da estrada ou a queda para o abismo só por querer estar com alguém; talvez seja a outra face, o beijo de dois amantes, a dor impronunciável de uma perda sem remédio.

Ama e faz o que quiseres,

a mais dura das sentenças que deixou Santo Agostinho. Já a encontrei em T-shirts, nas paredes das estações do Metro de Nova Iorque, por vezes atribuída a outros autores mais prováveis, poetas do Underground, Mama Cass, Mick Jagger..., cer- tamente nunca escrita no sentido original.

Ama e quê?

Estúpidos! Já nada há a fazer, se amar for o que eu penso: carregar alguém às costas e subir descalço a montanha por um caminho de vidros, esse açúcar espezinhado com que salgamos as feridas."

 

"Toda a luz que não podemos ver", Anthony Doerr

Charneca em flor, 14.05.23

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Este livro foi uma das escolhas de Janeiro no Clube do Livra-te. Eu nunca tinha ouvido falar dele nem do seu autor mas, na altura do lançamento, foi considerado um dos melhores livros do ano. Em 2015, "Toda a luz que não podemos ver" foi distinguido com o Prémio Pulitzer. 

A história situa-se, maioritariamente, na altura da II Guerra Mundial e gira em torno de duas personagens. Marie-Laure é uma jovem cega que vive com o pai, responsável por todas as chaves do Museu Nacional de História Natural, em Paris, e é nesse ambiente que cresce. Quando os alemães se aproximam de Paris, Marie-Laure e o pai fogem da cidade e acabam por ir até Saint-Maló, uma cidade costeira da Bretanha. Werner Pfenning é um órfão alemão com um enorme interesse por rádios o que se traduz num grande talento para pôr esses aparelhos a funcionar. Essa sua inclinação acaba por conduzi-lo a uma escola militar e, consequentemente, à guerra.

Esta obra está organizada em capítulos curtos que vão alternando a história de Marie-Laure com a história de Werner levando o leitor a olhar para os dois lados do conflito.  Inicialmente, achei que os capítulos curtos iriam facilitar a leitura mas tal não aconteceu. Embora a história seja muito interessante, a escrita não é muito cativante uma vez que algumas passagens se tornam muito repetitivas. A leitura foi mais difícil do que eu estava à espera.

Aquilo que extraí de mais positivo desta história foi o facto de ser possível olhar para a guerra pela perspectiva dos soldados alemães. A grande maioria das obras sobre esta época partem do ponto de vista dos Aliados, dos países ocupados ou da Resistência. Acho importante que se perceba que os soldados alemães podem ter ido para a guerra, não por grande convicção, mas sim porque foram obrigados pelas circunstâncias da sua vida tal como acontece, nos dias de hoje, em todos os conflitos que existem. O jovem soldado alemão, Werner, foi capaz de conquistar a minha empatia.

"Toda a luz que não podemos ver" encantou-me por um outro motivo. Grande parte da acção decorre na cidade de Saint-Maló onde já tive oportunidade de passar algumas horas. Nunca imaginaria que os habitantes da cidade bonita e soalheira que encontrei tinham passado por uma dura ocupação alemã e que a cidade, cuja muralha data do séc. XII, tinha sido destruida, quase por completo, quando os amerocanos chegaram para libertar a cidade do jugo germânico. A reconstrução de Saint-Maló levou 30 anos.

Não sendo um livro perfeito, tem alguns pontos muito positivos.


"Certa noite, Werner e Jutta sintonizam uma transmissão com algumas interferências na qual um homem novo, num francês melífluo com sotaque, fala sobre luz.
Como é sabido, meninos, o cérebro está trancado na mais absoluta escuridão, diz a voz. Flutua num líquido de cor clara dentro do crânio, nunca à luz. E, no entanto, o mundo que constrói na mente está repleto de luz. É povoado por cor e movimento. Portanto, meninos, como é que o cérebro, que vive sem uma centelha de luz, nos constrói um mundo pleno dela?"

"- Sabes qual é a maior lição da História? É que a História é aquilo que os vencedores disserem que ela é. Eis a lição. Quem ganha é quem decide a História. Agimos em nome do nosso interesse pessoal. Essa é que é a verdade. Indica-me uma nação ou uma pessoa que não o faça. O truque consiste em descortinar onde estão os nossos interesses."

 

P.S - Só agora reparei que tinha este post em rascunho, desde Fevereiro, mas tinha-me esquecido de o publicar.

"City of Girls", Elizabeth Gilbert

Charneca em flor, 21.02.23

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"City of Girls" foi um dos livros escolhidos para o mês de Janeiro no Clube do Livra-te. Por coincidência, foi o primeiro livro lido no meu Kobo, recentemente adquirido. Desta feita, optei por ler em inglês.

Elizabeth Gilbert tornou-se conhecida pelo livro de memórias,  "Eat, Pray, Love"* que deu origem ao filme com o mesmo nome protagonizado por Julia Roberts. Eu nunca tinha lido nada desta autora nem fazia ideia de que era romancista.

A narrativa de "City of Girls" está organizada em forma de uma longa carta que a protagonista, Vivien, escreve como resposta a Angela. Esta personagem, cuja identidade se mantém misteriosa durante quase todo o livro, pretende saber qual relação entre o seu próprio pai e Vivien. Assim Vivien, já idosa, mergulha nas suas memórias e conta-lhe toda a sua vida.

O relato começa no Verão de 1940 quando Vivien tinha 19 anos. Devido ao seu insucesso escolar, e sem saberem como lidar com o seu temperamento rebelde, os pais resolvem enviar a jovem para Nova Iorque. Ali vai viver com a sua tia Peg, proprietária de um edifício que incluí o teatro Lily Playhoyse, do qual é a directora. Vivien chega à cidade com uma mala e uma máquina de costura. O seu talento para costurar torna Vivien na responsável pelos figurinos das humildes peças de teatro levadas à cena pela tia Peg. Ao mesmo tempo, a jovem começa a tomar contacto com inúmeras personagens excêntricas e com um ambiente boémio muito diferente daquele a que estava habituada. Em Nova Iorque desenvolve a sua natureza feminina e independente. Vivien faz amizades, diverte-se, apaixona-se e vive momentos felizes até que tudo muda por uma má decisão.

A história de Vivien decorre durante 70 anos desde os anos 40 do séc. XX até à primeira década do séc. XXI. Não se limita a ser uma história de vida mas é também uma história de todas as mudanças sociais ocorridas durante esses anos. A vida de Vivien é influenciada pelas convenções sociais, mesmo que ela não lhes obedeça, pelo fantasma da Segunda Guerra Mundial, na qual os Estados Unidos da América tiveram um papel preponderante, pelo ambiente pós-guerra que transformou Nova Iorque numa cidade diferente e também pelas mudanças sociais ocorridas nos anos 60. No entanto, Vivien e as pessoas que lhe eram mais próximas sempre pautaram a sua vida por valores muito avançados para a época. A cidade de Nova Iorque descrita por Elizabeth Gilbert é uma verdadeira cidade de mulheres pouco convencionais, independentes e emancipadas.

Tal como Vivien vai amadurecendo ao longo do livro, a escrita de Elizabeth Gilbert também evolui. A história é dividida em 2 grandes blocos e, na minha opinião, a forma de escrever também é muito diferente nesses 2 blocos. Uma das características que mais me cativou foi o humor que se vai encontrando ao longo do texto. Esta leitura foi muito agradável e divertida, gostei mesmo muito.

 

"New York City in 1940

There will never be another New York like that one. I'm not defaming all the New Yorks that came before 1940, or all the New Yorks that came after 1940. They all have their importance. But this is a city that gets born anew in the fresh eyes of every young person who arrives here for the first time. So that city, that place - newley created for my eyes only - will never exist again. It is preserved forever in my memory like an orchid trapped in a paperweight. That city will always be my perfect New York.

You can have your perfect New York, and other people can have theirs - but that one will always be mine."

 

*Comer, Orar, Amar

Lendários, Tracy Deonn

Charneca em flor, 14.02.23

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Desde que resolvi aderir a clubes de leitura, tenho lido uns quantos livros fora da minha zona de conforto. Este "Lendários" é um bom exemplo disso uma vez que se trata de um livro de fantasia. Aliás já não lia livros deste género desde o fim da adolescência quando li a série "As Brumas de Avalon"

A leitura deste livro teve alguns percalços. Primeiro que tudo, não lhe consegui pegar em Dezembro* devido a este livro. Em seguida, quando estava completamente embrenhada na história, descobri um defeito no meu exemplar e tive que o devolver e esperar por um novo. Percalços à parte, foi uma leitura mesmo fantástica como é natural tendo em conta o estilo .

"Lendários" conta a lenda do Rei Artur mas de uma forma actualizada. A figura central é Bree, uma jovem que vai estudar para uma Universidade da Carolina do Norte ao mesmo tempo que tenta lidar com o luto pela morte repentina da mãe. Na sua primeira saída à noite, assiste a um ataque demoníaco acabando por se cruzar com os Lendários, uma sociedade secreta que reúne estudantes universitários que se afirmam descendentes dos Cavaleiros da Távola Redonda. Através do contacto com os Lendários, Bree confronta-se com os seus próprios poderes que desconhecia e que vai ter que aprender a controlar.

A autora conseguiu desenvolver uma história muito interessante e tão envolvente que não se consegue deixar de ler até à última página. Só que depois encontramos um final aberto que estende uma ponte para o segundo livro da saga.

A escrita é mesmo cativante e Tracy Deonn conseguiu abordar temas muito diferentes, e inesperados, de forma magistral. Nunca imaginei que fosse possível entrelaçar a cultura afro-americana sulista com a lenda do Rei Artur. Esta junção de temas permitiu incluir o racismo como um dos temas mais importantes deste "Lendários". Também nunca imaginaria encontrar aqui uma excelente reflexão sobre o luto e sobre como a perda de alguém transforma a vida de quem fica. A autora até conseguiu incluir uma personagem não binária de forma muito natural. Nem todos os autores o conseguem.

Tal como alguns dos livros que li no ano passado, eu não faço parte do público-alvo deste livro mas adorei esta leitura. Fiquei muito envolvida com estas personagens e com esta história. "Lendários" lê-se com muita facilidade apesar das suas mais de 500 páginas. Foi muito bom viajar no tempo e relembrar-me da jovem que se embrenhou n' "As Brumas de Avalon".

 

"Ser capaz de seguir o rasto da própria família até tão longe é algo que nunca imaginei. A minha familia apenas conhece a geração que se seguiu a Emancipação. De repente, é difícil estar aqui e absorver a magnificência da Muralha e não sentir uma inegável sensação de ignorância e inadequação. Depois, uma onda de frustração, porque provavelmente houve alguém que quis gravar tudo, mas quem poderia ter escrito a história da minha família até aqui? Quem teria sido capacitado, ensinado, autorizado a fazê-lo? Onde está a nossa Muralha? Uma Muralha que não me faça sentir perdida, mas sim encontrada. Um Muralha que se sobreponha a qualquer pessoa que lhe ponha os olhos em cima.

Em vez de admirada, sinto-me... injustiça."

 

P.S. - Emancipação refere-se à Proclamação da Emancipação assinada em 1862 pelo presidente dos EUA, Abraham Lincoln, dando início ao processo de abolição da escravatura nos estados confederados norte-americanos.

*"Lendários" foi uma das escolhas de Dezembro no Clube do Livra-te.

Daqui fala o Sam, Dustin Thao

Charneca em flor, 11.01.23

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"Daqui fala o Sam" foi a escolha de Dezembro, da Joana da Silva, para o Clube do Livra-te. Aproveito já para esclarecer que tenho consciência de que não sou o público-alvo deste romance mas, nos últimos anos, tenho tentado diversificar as minhas leituras. As propostas do Livra-te são uma boa forma de ler livros que, de outra maneira, não me chamariam a atenção.

"Daqui fala o Sam" tem como personagem central, uma jovem de 17 anos, Julie Clarke. Como todas as jovens, Julie tem sonhos por realizar e projectos para concretizar, ao lado do seu namorado Sam. Até que tudo muda quando Sam morre num trágico acidente. A dor profunda que sente faz com queira "enterrar" as recordações que partilhara com Sam. No entanto, um dia resolve ligar para o telemóvel dele para ouvir, pela última vez, a mensagem de voicemail. Só que Sam atende a chamada e, de forma surpreendente, estabelece-se uma comunicação entre eles para que Julie se possa despedir. 

Não sendo um livro marcante, foi uma boa leitura. Na minha opinião, Dustin Thao descreveu bem a forma como um adolescente lida com a morte de alguém próximo, seja um namorado ou um amigo. A premissa de que o autor partiu é muito boa tendo em conta a relação que, hoje em dia, se estabelece com o telemóvel. Não tenho a certeza de que a ideia tenha sido bem concretizada uma vez que o autor deixou muitas pontas soltas e pormenores que mereciam um maior desenvolvimento. 

Nesta fase da minha vida, e embora me tenha comovido, esta história não me apelou tanto ao sentimento como seria de esperar. Se o lesse aos 18 anos, provocaria muitas lágrimas, com toda a certeza.

Seja como fôr, escrever sobre o tema do luto na adolescência parece-se muito meritório. Não seria bom que houvesse uma última oportunidade para nos despedirmos daqueles que amamos?!

"Não te preocupes. Temos todo o tempo do mundo para fazer isso. Todo o tempo do mundo... As palavras ecoam por mim enquanto uma aragem entra pela janela, volteando sobre a minha pele. Fito o relógio sobre a porta. Não tinha reparado nele antes. Faltam-lhe os ponteiros.
Lá fora continua a não haver nada além de nuvens reluzentes. Agora que penso nisso, há quanto tempo é que o sol se esta a pôr?

- Passa-se alguma coisa? - A voz do Sam traz-me de volta para ele. Pestanejo algumas vezes."

Jane Eyre, Charlotte Brontë

Charneca em flor, 30.12.22

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No mês de Novembro, ainda houve tempo para a leitura do clássico "Jane Eyre". Este livro foi escolhido pelos seguidores do Livra-te para leitura conjunta do penúltimo mês de 2022.

Conhecemos Jane Eyre como uma criança órfã e infeliz, acolhida pela viúva do seu tio. Jane Eyre cresce sem amor e carinho até que é enviada para um colégio interno onde a sua situação não é muito melhor mas adquire as ferramentas para se tornar, também ela, professora. Quando a sua amiga directora abandona o colégio depois de se casar, Jane Eyre resolve tentar a sorte como preceptora. Jane Eyre é contratada para Thornfield Hall de forma a ensinar a pequena Adèle, uma criança acolhida pelo taciturno Mr. Rochester.

A minha edição deste livro tem esta capa linda mas encontrei alguns erros na edição de texto. Nada que me impedisse de ficar encantada com este livro. Apesar de Charlotte Brontë contar uma história que se enquadra na época em que foi escrita, nas entrelinhas encontramos um pensamento à frente do seu tempo. As identidades femininas e masculinas têm características muito marcadas mas a nossa personagem central apresenta uma certa dualidade na maneira como decide os passos a tomar na sua vida. No séc. XIX era muito difícil a uma mulher subsistir sem familiares que olhassem por ela mas isso não impede Jane Eyre de ir à luta e tentar ser dona do seu destino. Embora este livro tenha cerca de 175 anos, percebe-se continuam a existir pessoas com as mesmas características das personagens deste romance, sejam femininas ou masculinas. Afinal, aquilo que nos torna aquilo que somos não depende das épocas mas atravessa os tempos.

"- Isso vai além dos poderes m6agicos, senhor. - E acrescentei, só para mim: 《Uns olhos apaixonados são todo o encanto necessário: para eles, és belo suficientemente; ou, por outra, a tua rudeza vale mais do que todas as belezas.》

O Sr. Rochester lera por vezes nos meus pensamentos com uma tal clareza que me parecia incompreensível. Desta vez, porém, nanão o reparou na breve resposta que eu lhe dera e pôs-se a sorrir, com um sorriso só dele, mas que só raramente lhe aparecia como se o achasse bom de mais para as ocasiões ordinárias; esse sorriso era um verdadeiro raio de sol... Senti-me iluminada, inundada, aquecida."

De Amanhã em Amanhã, Gabrielle Zevin

Charneca em flor, 27.12.22

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Este livro foi escolhido, no mês de Novembro pela Joana da Silva do Clube do Livra-te. Devo começar por dizer que, dificilmente, pegaria neste livro se não fosse o Clube do Livra-te. A capa é muito apelativa já que se trata de um pormenor do quadro "A Grande Onda de Kanagawa" de Katsushika Hokusai que até já passou por este blog.

Em "De Amanhã em Amanhã" encontramos Sam e Sadie. As suas vidas cruzam-se na infância, num hospital, por circunstâncias dramáticas. O principal interesse que partilham é a paixão pelos videojogos. Entre ambos surge uma forte amizade mas um mal entendido acaba por afastá-los. Até que se voltam a cruzar no início da vida adulta. Quer Sam quer Sadie continuam a adorar jogos de computador e estão na universidade. Sam convence Sadie a desenvolverem um jogo em conjunto e as suas vidas ficarão, irremediavelmente, ligadas.

"De Amanhã em Amanhã" lê-se muito bem e a leitura foi uma experiência agradável. Não me identifiquei com as personagens mas acabei por gostar desta história de amizade e amor pontuada por inúmeros equívocos.

Nunca fui grande apreciadora de jogos embora tenha tido as minhas fases de Sims, Farmville ou Angry Birds. Não sei se foi por isso mas não me senti muito cativada pelo contexto onde a história se insere nem percebi algumas das referências relacionadas com o universo do gaming. A autora situa a história no início dos anos 90 mas encontram-se algumas incongruências temporais nesse contexto histórico como, por exemplo, a alusão à identidade de género. Outro ponto menos positivo é a extensão do livro. Para contar esta história não eram necessárias tantas páginas. A autora pretende, de tal maneira, mostrar os problemas de comunicação entre as personagens centrais que repete várias vezes a mesma ideia. 

A construção das personagens centrais, Sam e Sadie, é um dos pontos positivos do livro. Adorei as suas personalidades ressentidas, com os seus defeitos e as suas dificuldades comunicacionais. Os diálogos são, também, um dos pontos fortes do livro.O final, para mim, foi o culminar perfeito para esta história. "De Amanhã em Amanhã" não entra nos meus livros preferidos de 2022 mas não deixa de ser uma boa leitura. Experimentem.

 

"- Concordo. Mesmo assim, ainda gostaria de voltar a fazer um jogo contigo, se alguma vez arranjares tempo.
- Achas que é boa ideia?
- Provavelmente não - admitiu Sam, com uma risada. - Mas quero fazê-lo na mesma. Não sei como deixar de querer. Sempre que te encontrar, para o resto das nossas vidas, vou pedir-te para fazeres um jogo comigo. Ha um sulco no meu cérebro que insiste que é boa ideia.
- Mas essa não é a definição de loucura? Continuar a repetir a mesma coisa, a espera de um resultado diferente?
- É também a vida da personagem de um jogo - disse Sam. - O mundo de reinícios infinitos. Recomeça do principio, desta vez talvez consigas ganhar. E nem todos os nossos resultados foram maus. Eu adoro as coisas que criámos. Éramos uma equipa fantástica."

 

O Palácio de Papel, Miranda Cowley Heller

Charneca em flor, 29.11.22

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Quase que me esquecia de falar do último livro que li em Outubro. "O Palácio de Papel" foi uma das escolhas do passado mês do Clube do Livra-te da Rita da Nova e Joana da Silva. Este livro é o primeiro romance da autora. Miranda Cowley trabalhou na imprensa mas também foi produtora de séries televisivas de sucesso.

A acção d' "O Palácio de Papel" decorre durante as vinte e quatro horas mais decisivas da protagonista Elle. Tudo começa numa manhã de Agosto enquanto Elle está de férias com a família no local de sempre, "O Palácio de Papel". Entrelaçadas, com as decisões que Elle sente que tem que tomar, estão as suas recordações mais felizes mas também as mais dolorosas e dramáticas. Através desses recuos vamos percebendo com é que a vida da protagonista chegou ali, ao momento em que terá de decidir a segurança de um amor adulto ou a quimera do primeiro amor.

Gostei muito deste livro, a história é fantástica, e surpreendente nalguns pontos  e as personagens foram muito bem construídas, embora umas mais realistas do que outras. A personagem que mais me encantou foi Wallace, a mãe de Elle. E adorei a relação entre ela e o genro, Peter. Que diálogos deliciosos. Só achei que a organização dos capítulos e nomes atribuídos a cada capítulo não tinham muita lógica induzindo alguma confusão no leitor. 

A escrita de Miranda Cowley Heller é muito cinematográfica e gostaria de ler mais romances escritos por ela. Não vai para a lista dos livros com 5  mas fica perto.

 

"Largo o robe para o chão e fico nua a beira da água. No outro lado da lagoa, além dos pinheiros e dos arbustos, o oceano ruge, furioso.Deve trazer uma tempestade no seu âmago, chegada de algures no mar alto. Mas aqui, a beira da lagoa, o ar continua calmo e sereno. Espero, observo, escuto... os piados, o zumbir dos pequenos insetos, um vento que agita suavemente as folhas das arvores. Depois entro até aos joelhos e mergulho de cabeca na água gelida. Nado até fora de pé, além dos nenúfares, levada pelo entusiasmo, pela liberdade, pela adrenalina advinda de um pânico inexprimível. Tenho medo que uma tartaruga-mordedora chegue das profundezas e me trinque os seios pesados. Ou talvez seja atraída pelo cheiro a sexo que se liberta quando abro e fecho as pernas. De repente, sinto-me assoberbada pela necessidade de voltar a seguranca dos baixios, onde consigo ver o fundo arenoso. Quem me dera ser mais corajosa. Mas também adoro o medo, o fôlego que me fica preso na garganta, o coração aos saltos quando saio da água."

Carrie Soto está de volta, Taylor Jenkins Reid

Charneca em flor, 23.11.22

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Das leituras do mês de Outubro, fez parte este "Carrie Soto está de volta" escolhido pelo Clube do Livra-te. Taylor Jenkins Reid (TJR) é uma conhecida escritora norte-americana, com milhares de fãs em todo o mundo mas eu nunca tinha lido nada dela. Este livro faz parte de um conjunto de 4 romances* que podem ser lidos em separado mas que têm pontos de ligação entre eles.

Carrie Soto é uma tenista de alta competição, detentora de vários recordes internacionais que se retirou cedo devido a uma lesão. No início da história, acompanhamo-la enquanto assiste a uma partida da jovem tenista com maior capacidade para bater os seus recordes. Carrie Soto não consegue lidar com esse facto e resolve regressar à competição disposta a tudo fazer para não ser ultrapassada pelas tenistas mais jovens. 

Confesso que o início do livro não me estava a agarrar porque não me estava a conseguir identificar com a personagem. Carrie Soto é muito competitiva e ambiciosa  e eu não tenho essas características. Para além disso, achei um pouco entediante toda a explicação das regras deste desporto embora fosse necessário fazer esse enquadramento para um melhor entendimento da situação.

No entanto, a autora e as suas personagens acabaram por me conquistar. TJR é uma brilhante contadora de histórias e também constrói personagens com mestria. A relação com o pai, com altos e baixos, é enternecedora. Adorei a maneira como a autora finalizou toda a história. O livro tem uma organização muito dinâmica e a divisão dos capítulos, pelos torneios em que a personagem participa, faz-nos mergulhar facilmente no mundo do ténis.

Carrie Soto fez-me pensar que os desportistas de alta competição não têm vida fácil mesmo que venham a ter uma vida privilegiada e uma conta bancária recheada. E ser mulher desportista é ainda mais complexo porque não se respeitam as atletas de alta competição como se respeitam os homens na mesma situação. Para jogarem ao mais alto nível, seja em que desporto fôr, é necessário que os atletas prescindam de muitas coisas que nós, comuns mortais, damos como garantido. Regra geral, é preciso começar a trabalhar desde a infância e o ténis é uma das modalidades em que isso é muito frequente. Os tenistas com mais sucesso começam a praticar este desporto desde idades muito precoces. Enquanto estão no auge da carreira, têm o mundo e os fãs aos seus pés. E quando a carreira chega ao fim?! Deve ser muito difícil lidar com a ausência das ovações e das palmas. Por mais rodeados de amigos e família que estejam, é natural que experimentem uma sensação de solidão difícil de suportar.

Em resumo, "Carrie Soto está de volta" foi uma boa experiência. Valeu a pena o esforço de ultrapassar a overdose de ténis.

"Uma das grandes injustiças deste mundo virado do avesso em que vivemos é que se considera que as mulheres se vão desgastando com a idade e os homens vão ganhando algum tipo de profundidade." 

"Sinto-me tão grata neste momento por todos os jogos, todas as vitórias, todas as derrotas e todos os ensinamentos que trago na bagagem. Sabe-me tão bem ter 37 anos neste momento. Ter percebido pelos menos algumas coisas.
Conhecer a terra que piso." 

 

*Os sete maridos de Evelyn Hugo, Malibu renasce, Carrie Soto está de volta e Daisy Jones & The Six.

Como se fôssemos vilões, M. L. Rio

Charneca em flor, 18.10.22

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"Como se fôssemos vilões" foi o livro escolhido pela Rita da Nova para o Clube do Livra-te no mês de Setembro. Neste livro encontramos sete jovens estudantes de uma escola de arte muito especial onde estudam a dramaturgia de Shakespeare. Os jovens frequentam o último ano do curso. Oliver, James, Filipa, Richard, Alexander, Meredith e Wren apresentam personalidades muito similares às personagens que encarnam nas peças de Shakespeare que são encenadas na escola a ponto de os conflitos das obras se prolongarem para a vida real estabelecendo-se entre eles uma rivalidade saudável. A dada altura a amizade entre eles enfrenta uma prova inesperada após um acontecimento trágico.

O livro está organizado como uma peça de teatro, em actos e cenas, o que faz com que o leitor se sinta espectador de uma verdadeira peça de teatro. Esta história conquistou-me quase desde o início e adorei o ambiente outonal que se sente. "Como se fôssemos vilões" fez-me recordar os meus tempos de jovem universitária e tive muitas saudades dessa época. Gostei muito da forma como a autora construiu a história e do tom de mistério que envolve o acontecimento determinante para toda a história. 

A overdose de Shakespeare era dispensável. Obviamente que era essencial que houvessem passagens da obra quando estavam a encenar as peças mas utilizarem frases de Shakespeare numa conversa "normal" já me pareceu exagero. Outro ponto negativo é que se percebe, desde uma fase mais precoce da narrativa, quem foi o maior responsável pela tragédia que lhes mudou a vida. No entanto, acredito que a autora pretendeu dar mais ênfase à dinâmica que se estabelece entre os jovens quando estão perante uma situação limite. A resolução do mistério era secundária para a história que a autora pretendia contar.

Esta leitura foi uma óptima experiência mas dificilmente teria lido este livro se não tivesse sido escolhido para o Clube do Livra-te. Como estava com outras leituras, demorei algum tempo a terminá-lo mas é um livro que se lê com vontade em pouco tempo.

 

"Entram em cena os atores. Éramos sete nessa altura, sete almas fulgurantes com futuros prodigiosos a nossa frente, embora não víssemos mais longe do que os livros diante dos nossos rostos. Estávamos sempre rodeados por livros e palavras e poesia, todas as paixões ferozes do mundo em papel fino entre capas de carneira. (Atribuo em parte a culpa do que aconteceu a esse facto.) A biblioteca do Castelo era uma sala octogonal arejada, forrada a estantes, atravancada com peças de mobiliário antigas e sumptuosas, e mantida a uma temperatura que provocava sonolência, por um monumental fogão de sala quase constantemente aceso, independentemente da temperatura no exterior. O relógio na prateleira por cima da lareira deu as doze badaladas, e nós mexemo-nos, um a um, como sete estátuas a
ganharem vida."