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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Vários Círculos

Charneca em flor, 02.02.22

Depois de uma fila imensa, entrei, finalmente, no Museu Guggenheim. Já era o segundo dia da minha viagem a Nova Iorque que dedicava a museus.

No dia anterior, enquanto passeava por Central Park, vislumbrara o edifício do museu e tinha decidido que tinha que lá entrar. O aspecto arquitectónico exterior era, ele próprio, uma obra de arte que me deixou intrigada sobre aquilo que albergava no interior.

Aquilo que fui encontrando no Museu impressionou-me pela estranheza. Solomon R. Guggenheim criou uma impressionante colecção de arte moderna o que o levou a criar a Fundação Solomon R. Guggenheim bem como o museu. Tenho que confessar que nunca fui muito entendida em arte mas sempre apreciei objectos bonitos mas que eu conseguisse compreender. Isto significa que a arte moderna e contemporânea sempre escapou ao meu entendimento.

320px-Vassily_Kandinsky,_1926_-_Several_Circles,_G

Inesperadamente, um quadro chamou-me a atenção pela motivo e pelas cores electrizantes. Era Einige Kreize (Vários Círculos) de Wassily Kandinsky. Senti-me atraída, de forma magnética, fiquei diante dele e deixei que comunicasse comigo. Embrenhei-me por aquilo que o quadro mostrava e compreendi a sua mensagem. Pelo menos, a mensagem que o artista me transmitiu a mim. Olhei todos aqueles círculos e vi a minha vida. Cada objecto colorido daquele quadro representava as pessoas e os ambientes que foram fazendo parte da minha vida ao longo dos anos. Kandinsky pintou círculos maiores e mais pequenos, uns tão próximos que tocam nos outros e até se sobrepõem. As pessoas que passam pela nossa vida são assim. Num momento são-nos muito próximas mas depois vão-se afastando até quase desaparecendo. Nós somos pessoas diferentes consoante os ambientes em que nos movemos. Há ambientes que nunca se tocam mas há outros que se cruzam quase se sobrepondo. E foi isso que aquele quadro me disse. Eu vi a minha vida naqueles círculos coloridos. O quadro fascinou-me tanto que quando dei por mim tinha chegado a hora de encerramento e quase que eu ficava fechada no interior do Museu Guggenheim.

 

Texto escrito para o Desafio Arte e Inspiração organizado pela Fátima Bento e com a participação de Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yueCélia, Charneca Em FlorCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSetePartidas

O presente difícil de encontrar

Os Desafios da Abelha | Conto de Natal de 2021

Charneca em flor, 30.11.21

Nos dias anteriores, a cidade tinha sido afectada por um enorme nevão. Na televisão, as autoridades de segurança mostravam-se muito preocupadas com a segurança rodoviária. Só que a véspera de Natal chegara e as pessoas queriam fazer as compras de última hora, como era costume. Nada as fazia ficar em casa, nem sequer a neve.

Os limpa-neves trabalhavam sem descanso mas, assim que acabavam de limpar uma estrada, ela voltava a ficar coberta de neve. Mesmo assim, os parques de estacionamento da superfícies comerciais apresentavam-se quase cheios. Apesar das péssimas condições atmosféricas, as pessoas arriscavam fazendo deslocações, nem que tivessem que estar horas numa fila de trânsito. Tudo valia a pena para salvar o Natal.

Contra todas as adversidades, havia alguém que se deslocava, freneticamente, de centro comercial em centro comercial, de loja em loja. Os engarrafamentos não o preocupavam. Aquele senhor, bonacheirão, vestido de vermelho, deslocava-se num trenó. Mas não era um trenó qualquer, era puxado pela experiente Rena Rudolfo. Não havia engarrafamento, cruzamento, semáforo ou rotunda que a parasse porque Rudolfo se deslocava pelo céu, não voando que isso deixava para os pássaros, mas pulando de nuvem em nuvem. Na noite mais mágica do ano, era vê-los, Pai Natal e Rudolfo, saltitando pelos céus.

Só que, naquele ano, o Pai Natal começou a ser avistado muito antes de a noite cair. Um menino tinha-lhe escrito uma carta muito comovente mas tinha-o colocado perante uma situação complicada. O pedido não se conseguia satisfazer na fábrica de brinquedos do Pólo Norte. Sendo assim, o Pai Natal andava, tal e qual o mais comum dos mortais, a tentar comprar aquilo que o menino, João de seu nome, tanto ansiava. Na sua busca infrutífera foi estacionando em vários locais surpreendendo os incautos transeuntes embora a maioria pensasse que se tratava de uma mera estratégia de marketing.

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O céu estava a escurecer porque o dia ia chegando ao fim e o Pai Natal não resolvia a sua questão. Até que teve a ideia de ir consultar um colega que também costumava trabalhar nesta época do ano, o Menino Jesus. Com a ajuda da sua fiel Rena Rudolfo, foi até ao Paraíso expôr o seu problema. Depois de ser muito bem recebido, contou a situação o mais depressa que conseguiu. O Menino Jesus riu-se com gosto dizendo:

- Querido amigo, como é que é possível que um homem com a tua experiência esteja a fazer um problema tão grande dessa situação?! Procura bem dentro de ti, no coração, que vais encontrar a solução. Até te vou dar uma ajuda. – E deu-lhe uma caixa vazia enquanto se despedia uma vez que não havia tempo a perder. Era chegada a hora de levar os presentes a todas as casas do mundo.

O Pai Natal compreendeu tudo, finalmente. E, de nuvem em nuvem, lá foi saltitando e deixando presentes em todos os lares, dos mais humildes aos mais ricos.

Na manhã de Natal, a neve continuava a cair lá fora. Na grande casa que se erguia no cimo da colina, inúmeras crianças saíam dos seus quartos e desciam as escadas, com grande algazarra, até à árvore de Natal da sala comum. No orfanato do Menino Jesus, nenhuma criança ficava sem presente mas os olhos que mais brilhavam eram os do João porque a sua prenda era a mais reluzente. No momento em que se preparava para abri-la, soou a campainha.

- Vem, João, os teus pais chegaram para te levar. Vais passar o dia de Natal com a tua nova família.

Da caixa entreaberta espalhou-se no ar o doce aroma do amor. O desejo do pequeno João tinha sido realizado. O presente que pediu ao Pai Natal foi apenas este, Amor.

 

Este pequeno conto, inspirado na imagem que o ilustra, foi escrito no âmbito do desafio lançado pela Ana de Deus, inspirado na iniciativa anual da Mãe Natal dos Blogs do Sapo, imsilva.

Desafio Arte e Inspiração #8

A sedutora

Charneca em flor, 03.11.21

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Ilustração de Moda, Almada Negreiros

 

Quando a via passar, Bento ficava completamente transtornado. Aquela mulher era magnética. A altivez e a elegância com que ela caminhava conferia-lhe uma certa nobreza. Não se pense que ele a vigiava. Apenas se dava a estranha coincidência de ele sair de casa precisamente à mesma hora a que ela passava à sua porta. Todos os dias. Mantendo uma certa distância, ele acompanhava-lhe os passos sentindo o halo de perfume que ela deixava à sua passagem.

Bento era um homem tímido, muito diferente dos homens da sua geração.

Naquela época, era suposto que o homem fosse o sedutor e que a mulher fosse recatada. Pelo menos, aparentemente. Na verdade, uma mulher inteligente era perfeitamente capaz de ser ela a sedutora mas fazendo com que o homem acreditasse nas suas qualidades irresistíveis de galanteio.

Conceição Felicidade era, sem dúvida, uma mulher inteligente e já percebera que aquele desconhecido se perturbava com a sua presença. Há muito que reparava nele e na maneira como a olhava quando se cruzavam. Na verdade, o seu aspecto e porte também lhe tinham chamado a atenção. Só ainda não descobrira como havia de chegar à fala com aquele homem sem o assustar nem parecer uma oferecida. O equilíbrio era muito ténue. Por mais que se vivessem os loucos anos 20 por essa Europa fora, Portugal continuava a ser um país retrógrado. Algumas atitudes nunca seriam bem vistas numa mulher séria. Ela ansiava que aquele homem lhe dirigisse a palavra porque ela teria todo o prazer em retribuir-lhe essa atenção. No entanto, a situação já se arrastava há semanas e Conceição Felicidade queria confirmar se aquele homem estava mesmo interessado. De repente, fez-se luz na sua mente.
Sem perceber bem de que se tratava, Bento reparou que a sua musa deixara cair algo. O homem estugou o passo. Abandonada no passeio, jazia uma singela luva amarela. Aquela era a oportunidade que Bento precisava. A luva pertencia àquela bela mulher e fora isso que ele vira cair. Bento andou ainda mais depressa de modo a conseguir alcançá-la.

Conceição Felicidade olhou para trás, o mais disfarçadamente que conseguiu, e viu que ele mordera o isco. Percebendo que ele começara a andar mais depressa, ela parou diante de uma montra para lhe facilitar a tarefa.

- Minha Senhora, peço desculpa mas penso que isto lhe pertence.

Fingindo-se sobressaltada, Conceição Felicidade virou-se para o encarar.

- Oh, perdão. Não queria assustá-la. Acho que deixou cair a sua luva.

Conceição Felicidade sorriu-lhe, corando de forma encantadora. Aceitando a luva, deixou que os dedos de ambos se tocassem provocando-lhes um arrepio electrizante.

- Muito obrigada, não me tinha apercebido de que a tinha perdido. – disse ela enquanto o olhava nos olhos de modo fugaz.

Bento, espezinhando a sua timidez e percebendo tinha que aproveitar aquela oportunidade única, arriscou num convite:

- Posso oferecer-lhe alguma coisa para compensar o susto que lhe provoquei? Aqui ao lado há uma casa de chá muito agradável.

Conceição Felicidade já não tinha dúvidas de que estava no bom caminho. Apoiando-se no braço que ele lhe oferecia, ela preparou-se para concluir, com sucesso, a ardilosa tarefa de o cativar.

 

Neste desafio de inspiração artística, participam estes criativos  Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCélia, Cristina Aveiro, Fátima BentoImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas

 

Desafio Arte e Inspiração #2

Junto ao cipreste

Charneca em flor, 22.09.21

Do alto da janela do meu quarto, observo o céu estrelado. No ar nocturno sente-se o aroma a fim de Verão salpicado com o cheiro do alecrim e da alfazema que crescem ali pela serra. Aqui, neste velho palacete, aumenta em mim a esperança de me conseguir reencontrar e voltar a sentir-me viva e inteira.

O que me trouxe até aqui foi, apenas e só, a minha vontade. As minhas deambulações pela internet conduziram-me a este sítio, a esta pequena cidade do sul de França que antevejo da minha janela. O edifício onde estou é antigo e um pouco sinistro. O meu quarto fica numa das torres por isso usufruo de um panorama desafogado da cidade. Todas as noites, antes de me deitar, fico aqui a apreciar esta vista maravilhosa. Gosto de ver as casas da cidade e imaginar como será a vida de quem lá vive. Gostava de me perder naquelas ruelas. Por enquanto, não passa de um projecto porque não me deixam sair daqui. O único contacto com o exterior é quando estico os braços e toco no cipreste, com a ponta dos dedos.
Lá em baixo, o sino do campanário começa a tocar as doze badaladas que assinalam a meia-noite. Já devia estar deitada há muito. Os horários deste hospício onde me encontro são muito rígidos. Daqui a poucas horas, eu e outros como eu teremos que percorrer os corredores para participar nas actividades que farão de nós pessoas mais normais e menos loucas.

Pouco depois de me deitar, sinto que alguém me toca suavemente nos ombros. Ouço alguém falar com alguma urgência mas não é a minha língua materna que oiço. Abro os olhos sem compreender o que se passa nem onde estou. Vários rostos fixam-me com ar preocupado e estupefacto. Começo a perceber o que me diz a pessoa que me acordou. Acho que é um segurança pela roupa que veste:

- Minha senhora, sente-se bem? – o homem fala em inglês. Eu entendo mas não consigo raciocinar o suficiente para lhe responder. Assim sorrio e aceno com a cabeça.

As outras pessoas desinteressam-se de mim e começam a afastar-se. Alguém me pergunta:

- És portuguesa, não és? Precisas de ajuda? – é uma mulher que fala.

- Sim, sou portuguesa. Como sabes?

A mulher diz algo ao segurança que se desvia ligeiramente.

- Há pouco, ouvi-te murmurar e pareceu-me português .

- O que é que aconteceu? Onde estou?

- Estás no MoMa*, em Nova Iorque. Quando cheguei, já estavas deitada nesse banco e parecias adormecida. Pelo que percebi, viram-te como ar de quem estava em transe a olhar para um quadro. Até derrubaste as barreiras de protecção e tocaste no quadro a ponto de disparar os alarmes. Nesse momento, vieste deitar-te no banco. Os turistas que andavam por aqui disseram que parecias sonâmbula. Estás sozinha? Será melhor chamarmos os paramédicos?

- E que quadro era?

- Aquele, o “Starry Night" do Van Gogh.

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A minha patrícia atenciosa afasta-se e ajuda-me a sentar no banco. Diante de mim, vejo a paisagem que se via do meu quarto no hospício soberbamente pintada pela mestria de Vincent Van Gogh. Eu estive dentro de um quadro de Van Gogh. Não, não digam que foi um sonho. Eu estive mesmo naquele hospício. Ainda sinto o aroma do alecrim e da alfazema nas minhas narinas e na ponta dos dedos guardo a sensação de tocar nos ramos do cipreste. Estarei tão louca como o pintor holandês do séc. XIX? Ou serei uma reencarnação? Instintivamente levo a mão à minha orelha esquerda.

*Museu de Arte Moderna de Nova Iorque

Quem terá escolhido este quadro? Talvez a Fátima Bento.

 

Este texto é a minha participação no Desafio Arte e Inspiração lançado pelo blogue Porque Eu Posso e conta com a participação de Ana de DeusAna Mestrebii yue, CéliaCristina Aveiro, Fátima BentoGorduchitaImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãJorge OrvélioLuísa De SousaMariaMaria AraújoMarquesaMiaMartaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas

 

Desafio Arte e Inspiração #1

A fúria do mar

Charneca em flor, 15.09.21

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 "A Grande Onda de Kanagawa" 

Katsushika Hokusai

 

A meteorologia anunciou, há pouco, alerta vermelho em todo o país devido ao mau tempo causado pela tempestade que se aproximava.

As entidades competentes desaconselham a presença em zonas junto do mar mas o temporal não será maior do que o turbilhão que sinto dentro de mim. Quando me sinto muito ansiosa é o mar que me acalma. A grandiosidade do oceano faz-me tomar contacto com a minha pequenez e consigo colocar qualquer problema em perspetiva.

O parque de estacionamento da praia está quase vazio. Sem sair do automóvel, olho as ondas gigantescas. O mar é como uma pessoa furiosa, com vontade de destruir tudo à sua volta. Realmente, algumas pessoas afadigam-se à volta do bar da praia para protegerem a frágil construção antes da temporal chegar em força.

Apesar do perigo eminente, o perpétuo movimento daquela massa de água exerce uma irresistível atracção sobre mim. Não tenho forças para lutar contra o magnetismo do mar. Ainda hesito mas saio do automóvel e caminho pela areia da praia.

“E se eu entrasse na água? Talvez nunca mais voltasse e todos os meus problemas se transformariam em espuma dos dias.” Estes pensamentos atravessam o meu espírito enquanto a ondulação se torna cada vez mais impressionante.

De repente, há uma onda que me envolve. Não luto com ela e deixo-me ir. Ao longe alguém grita por mim mas estou perdida no abraço das ondas do mar que ora me arrastam para as profundezas, ora me erguem na crista da onda até que desapareço da face da terra em direcção a uma luz muito brilhante. O túnel formado por aquela massa de água abre-se no lugar mais bonito que já vi. Os meus olhos estão incrédulos com a paisagem que conseguem observar; verdes prados, cascatas brilhantes, animais saltitantes e pessoas felizes, tudo iluminado pelo sol radioso. A pouca distância vejo alguém, estranhamente, familiar. É um homem de longas barbas brancas, olhar doce e braços abertos para me receber:
- Não me reconheces, minha filha? Sou o teu Deus. Tanto clamaste por mim que pedi ao mar que te trouxesse para o Paraíso.

O medo invade-me as entranhas. Verdadeiramente, eu não queria morrer. Só queria desfazer-me dos problemas. Este sítio é maravilhoso mas como é que digo a este Senhor: “Enganei-me, por favor deixe-me voltar à minha vida.”?

 

Hoje inicia-se o Desafio Arte e Inspiração organizado pela inexcedível Fátima Bento do blogue Porque Eu Posso.

A ideia consiste em excrever um texto inspirado num quadro. Achei a ideia excelente porque a pintura é uma forma de arte que me interessa muito. O quadro proposto é escolhido por um dos participantes. Consfesso que não conhecia este quadro e estou intrigada com quem o terá escolhido. Vou apostar no José da Xã.

No desafio Arte e Inspiração, participam Ana DAna de DeusAna Mestrebii yue, Célia, ConchaCristina AveiroFátima Bento GorduchitaImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãJorge OrvélioLuísa De SousaMariaMaria AraújoMarquesaMiaMartaOlgaPeixe FritoSam ao Luarsetepartidas

 

 

 

Desafio de Escrita dos Pássaros 3.0

Afinal havia outro... fogão

Charneca em flor, 21.05.21

A chave rodou na fechadura com alguma dificuldade o que não me surpreendeu. Afinal, aquela porta já não devia ser aberta há anos.

Durante muito tempo não fui capaz de entrar na casa da minha avó onde passei os momentos mais felizes da minha infância. Mas desde dia negro da “zanga", nunca mais vi a minha avó. Os meus pais levaram-me para longe, cresci e fui-me esquecendo desta pessoa que tanto me amou. Só que ela nunca se esqueceu de mim deixando a sua casa como herança. O meu coração foi invadido pela culpa por ter deixado que a minha avó partisse sem sentir, novamente, o meu abraço e levei anos a decidir voltar aqui.

Depois de algum esforço , lá abri a porta para poder entrar. Logo ali, na entrada, fiquei envolvida, dos pés à cabeça, em teias de aranha. Encontrei uma janela que estava tão perra como a porta. Abri-a permitindo que a claridade do dia iluminasse aquele cenário desolador. Os móveis estavam protegidos com lençóis velhos e plásticos mas, em cima deles, repousava uma espessa camada de pó.

Continuei a explorar a casa da qual me recordava vagamente. Quando encontrei a cozinha, lembrei das muitas horas que passava com a minha avó a cozinhar. Só que aquela cozinha é-me estranha. Não reconheci aquele fogão ou aquela bancada por mais que rebuscasse na minha memória. Não consegui visualizar a minha avó naquele espaço. Talvez a cozinha tivesse sido remodelada.

Olhei através do vidro baço da janela e reparei numa outra construção diante da cozinha. Por coincidência, ou talvez não, ao lado da porta estava uma chave identificada com “cozinha do quintal”. Será…

Meia dúzia de passos separavam a casa principal daquele anexo. Assim que me aproximei, senti-me invadida por uma sensação de conforto. Estranhamente entrei, com relativa facilidade, e comigo entraram também os raios de sol que fizeram brilhar algo que se encontrava em frente da porta. Foi então que o vi, tão reluzente como se fosse novo, o fogão a lenha da minha avó. Só nesse instante é que as recordações regressaram em catadupa. Senti a presença da minha avó visualizando-a enquanto mexia os tachos confeccionando comida reconfortante que me enchia o estômago e a alma. Caí de joelhos diante do fogão a lenha da minha avó e chorei pelo tempo irrecuperável que passei longe dela. 

Pela porta entrou uma brisa que me abraçou e enxugou as lágrimas. Só podia ser a minha avó. Finalmente reconciliei-me com o passado e resolvi começar a limpeza pela maravilhoso fogão da minha avó. Só faltava aprender a cozinhar ali e assim honrar-lhe a memória, entre tachos e tachinhos.

 

Aqui está a minha resposta ao Desafio dos Pássaros.

 

Desafio de Escrita dos Pássaros 3.0

Tema 1 - Foi o que ouvi

Charneca em flor, 07.05.21

Pela fresca da manhã, a Ti Catrina varria a rua à frente da sua porta. “ Quando o presidente da junta passar por aqui tenho que lhe dizer que os varredores de rua nunca põe cá os pés, quanto mais a vassoura”, pensava ela enquanto manejava a sua. Com o barulho que fazia, nem ouvia os passos arrastados que se aproximavam:

- Bom dia, Ti Catrina. Anda varrendo?

A outra deu um pulo assustada.

- Ai, comadre, que a vi. Já lhe punha os olhos em cima há que tempos. Tem estado doente? me diga que apanhou aquela maleita que veio da estranja.

- Cruzes, credo. Nem me fale nesse bicho. O meu filho se cala com isso. Sempre a dizer que tenho que me meter em casa. Se ele sonha que eu saí, vai ficar azedo como um limão.

- Os meus filhos são iguais. Sempre em fezes por causa desse conovírus ou como é que se chama essa coisa. Então e onde vai a Ti Jaquina? Ao médico?

- Ao médico?! O posto médico está sempre fechado. sei onde se meteu o doutor. Ando aqui com umas dores no lombardo há um ror de dias.

- No lombardo?! será na lombar?!

- É isso, é. Até fui ali à doutora da farmácia e ela deu-me uns pusitórios e uns emplastrios mas estou nada melhor. Disseram-me que há ali um endirêta na rua de baixo que é mûta bom.

- Um endirêta aqui na terra?!

- A Ti Maria Carraça diz que apareceu aí, vindo lá de Lisboa com a filha do falecido Ti Chico da Fonte. Estão a viver na casa do falecido. Diz que vão arranjá-la. A cachopa disse à Ti Maria que estavam fartos de Lisboa e com medo do conovírus e fugiram para cá. Só que a Ti’Anica diz que fugiram doutra coisa.

- Atão e como é que ela sabe?

- A Joana que trabalha na televisão, a filha da Ti’Anica, conhece bem a cachopa do Ti Chico. Diz que foi uma escâdaleira. Fugiram de Lisboa para se amigarem.

- E fugiram de quê?

- Atão não se alembra? A cachopa era casada com um figurão da política com muito mau feitio. Mas a Ti’Anica diz que isso nem foi o pior. O tal endirêta é muito mais novo do que ela e namorava a neta do Ti Chico. A cachopita anda a estudar nessas medicinas novas, alternadeiras ou como é que se chamam.

- Grande pouca vergonha. Então e a Ti Jaquina vai-se meter na casa de gente dessa?

- Ó comadre, desde que passem as dores… quero lá saber em que cama é que o hôme se deita. Se ele afagava a mãe e a filha deve ter muito jeitinho naquelas mãos.

E a Ti Jaquina lá seguiu o seu caminho. A Ti Catrina?! Foi bater à porta da vizinha para lhe contar a sem vergonhice que se passava na casa do Ti Chico.

 

P.S. - Como é Primavera, a passarada voltou a voar através da escrita. Não podia deixar de responder ao desafio deste pardalito. Este tema levou-me às conversas que ouvia quando ia ao Alentejo na minha infância mas também me inspirei nas palavras engraçadas que ouço lá na farmácia. Não é uma obra-prima da literatura mas espero que se divirtam.

 

P.S.2 - tinha-me enganado na hora da publicação. Reposto.

Desafio dos Lápis de Cor #branco

Epílogo

Charneca em flor, 14.04.21

Sofia olhava pela pequena janela do avião. Lá fora, um mar de nuvens brancas. Apetecia-lhe ir lá para fora e lançar-se para aquela imensidão branca e fofa. A sua editora dormia a sono solto na cadeira ao lado. Ambas iam a caminho do Brasil para um festival literário. O seu livro tinha feito o pleno ao ser muito elogiado pela crítica e também muito bem recebido pelos leitores. Nunca poderia ter imaginado um percurso assim para o seu primeiro romance. Aquela viagem tinha sido tão inesperada porque nunca poderia esperar que a convidassem a ela, uma perfeita desconhecida, para participar num evento daqueles.

Por outro lado, Sofia começara a busca incessante por uma nova história que fosse tão boa como a do seu primeiro romance, ou melhor, se possível. Quando um primeiro romance tem um sucesso muito grande, o bloqueio da folha branca é assustador. Sofia tinha medo de não ser capaz de escrever mais nenhum romance. Assoberbada com os seus compromissos, sentia que a torneira da inspiração se tinha fechado. E estava tão perra que não parecia possível abri-la novamente.

Aliás, a sua própria vida era uma página em branco e ela não sabia que caminho que seguir. Dedicar-se a tempo inteiro à escrita? Continuar a trabalhar e escrever nas horas vagas? Escrever o livro que, agora, a enchia de glória não fora assim tão fácil como lhe parecera ao início. Para chegar ao resultado final foi preciso trabalhar muito para chegar ao resultado final. Seria ela capaz de viver da escrita?!

Como se este dilema não fosse suficiente, Tomás reaparecera na sua vida. Também ela se apaixonara por ele, outra vez. Não com a inocência da juventude mas com a intensidade de mulher adulta. Nas últimas semanas, tinham estado juntos sempre que as respectivas ocupações permitiram. Ela tirara férias para se dedicar à promoção do livro mas esse tempo estava a esgotar-se. Em breve ela teria que voltar a Bruxelas onde trabalhava. Antes de Sofia embarcar, tinham tido uma discussão sobre relações à distância e o tema ficara em standby. Tomás tinha um filho e não o queria nem podia abandonar como a mãe fizera. Não podia largar tudo e ir viver com ela para Bruxelas se ela continuasse lá. Sofia estava tão habituada a viver sozinha que a hipótese de voltar para Portugal e ir viver com o Tomás e tornar-se madrasta, essa palavra horrível, de um adolescente a assustava de sobremaneira.

Apesar do turbilhão que ia na sua cabeça, lá adormeceu até ao fim da viagem. O sono foi agitado enquanto sonhava com folhas brancas que a soterravam não a deixando respirar.

Horas depois, chegaram ao destino e instalaram-se no hotel. A editora convidara-a para jantar mas a viagem deixara-a indisposta. Preferiu ficar no quarto e aproveitar para enfrentar a folha em branco, corajosamente. Mas antes, aproveitando a internet fornecida pelo hotel, foi ver o email e, dom surpresa, encontrou um email de Tomás. Com o coração acelerado e com medo que ele quisesse pôr um ponto final na relação daquela forma, abriu-o.

As palavras de Tomás comoveram-na até às lágrimas e lembrou-se daquele bilhete que ele lhe atirara à varanda há tantos anos:

“Meu amor,
A vida ensinou-me que devemos lutar por aquilo em que acreditamos. E eu acredito no nosso amor. Já me arrependi muito por não ter reagido da melhor forma quando éramos jovens e ter permitido que te afastasses de mim sem fazer nada para compreender o que se passava contigo. Não posso, nem quero, perder-te outra vez.
Estou a escrever-te a conselho do meu filho. Sim, o meu filho adolescente é o meu melhor conselheiro. Sabes o que ele me disse quando lhe contei a nossa história e os nossos dilemas?
《“Papá, se gostas assim tanto dela, não a deixes fugir. Se tiverem que viver à distância e tu tiveres que viajar com frequência para estar com ela, faz isso. Não te preocupes comigo. Tu és o melhor pai que eu poderia ter tido. Não me estarás a abandonar. Eu nunca irei sentir isso, papá. Nunca te vi tão feliz. Tens esse direito. Mas a Sofia também tem o direito de ser feliz. E se para isso for necessário que ela mantenha a sua independência, pois que seja assim. E tu só tens que aceitar. Moderniza-te, paizão. Já lá vai o tempo em que as mulheres deixavam tudo para seguir um homem.》

E não é que o meu filho tem razão?! Eu estou disposto a fazer a minha parte nesta relação e vivê-la segundo os teus termos. Se decidires continuar em Bruxelas, eu vou apoiar-te e vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que a nossa relação à distância funcione. Se voltares a Portugal mas preferires ter a tua casa, eu também aceitarei. Confesso que será difícil mas não se pode prender uma borboleta. Ela só será feliz se voar livre.Eu quero construir algo contigo. Não te posso perder outra vez. Qual será o edifício que resultará, não sei. O futuro o dirá.
Amo-te muito e apetecia estar aí contigo e cobrir-te de beijos.”

O coração de Sofia continuava acelerado. Quando se despediram, Tomás voltara a insistir para que ela fosse viver com ele e com o filho. Não o imaginava capaz de escrever aquelas palavras. Se ele estava disposto a ceder e se tinha criado um filho com aquela clarividência, valia a pena dedicar-se aquele amor. Não sabia o que iria resultar dali mas estava decidida a descobrir.
A folha branca da sua vida começava a encher-se de palavras. Agora só lhe restava continuar a escrevê-la, a quatro mãos ou quem sabe a seis. Talvez fosse engraçado ser madrasta daquele miúdo.

 

Fim

Participam neste Desafio da Caixa de Lápis de Cor da Fátima Bento, as brilhantes ConchaA 3a FaceMaria AraújoPeixe FritoImsilva, Luisa de SousaMariaAna DCéliaGorduchitaMiss LollipopAna MestreAna de DeusCristina Aveirobii yue, os brilhantes  José da Xá e João-Afonso Machado.

Agora também com a participação especial da nobreza na pessoa a talentosa e divertida Marquesa de Marvila

 

Obrigada por me acompanharem nesta aventura.

Desafio dos Lápis de Cor #castanho escuro

Apaixonei-me por ti, outra vez

Charneca em flor, 07.04.21

Lentamente, Sofia foi despertando ao sentir o seu corpo tocado pela luz da manhã. No ar pairava um delicioso aroma a café acabado de fazer. Confusa, olhou em volta sem se aperceber bem de onde estava. Ao seu lado esquerdo, um jovem adolescente sorria-lhe, encerrado na sua moldura.

De repente, as lembranças surgiram em catadupa. O reencontro com o seu primeiro amor tinha despoletado uma inundação de emoções que ela julgava devidamente enclausuradas como água numa represa. Quando Tomás lhe estendeu o livro para que o autografasse foi como se as comportas do seu coração se abrissem e deixassem correr as recordações da adolescência.

No final da sessão de autógrafos, Sofia sentiu que Tomás era como um magnete que a atraía e ao qual ela não conseguia escapar. Na verdade, também não fez muito esforço para o evitar. Inevitavelmente, saíram juntos com a intenção de tomarem um café e recuperaram os anos que tinham passado.

Ambos falaram das suas vidas. Sofia partilhou o seu percurso universitário, a experiência do Erasmus e o seu trabalho em vários países da Europa. Ambos soltaram gargalhadas com as histórias caricatas que Sofia contavam com muita graça. Ela falou, também, da aventura de ter saído da sua zona de conforto para escrever um livro e da coragem que teve que ter para o mostrar a alguém. Tomás, a medo, falou-lhe da sua relação turbulenta com Ana, de como tinham sido pais tão cedo o que o levara a abandonar a faculdade no 1° ano para começar a trabalhar.

A conversa corria tão agradável e escorreita que se prolongou para um jantar à beira-mar, na mesma praia onde tinham passado os últimos momentos juntos. A magia daquele lugar, ao entardecer, reacendeu a química que havia entre eles tornando o ar que os rodeava electrizante.

Emocionado, Tomás pegou-lhe e pediu perdão por, no passado, não ter lutado pelo amor que sentia por ela. Quando ela acabara o namoro sem grandes explicações, ele sentira-se rejeitado. Esse sentimento acabara por conduzi-lo para os braços de Ana com quem vivera um amor obsessivo, mais baseado na atracção física do que na comunhão de almas. Uma relação que acabara, repentinamente, quando o filho de ambos tinha 3 anos porque Ana o abandonou, não tinha sido talhada para a vida familiar. Sofia, pela sua parte, desculpou-se por não lhe ter explicado a razão que a levara aquela atitude e lamentou que a relação dele não tivesse durado.

Sofia e Tomás estavam tão satisfeitos na presença um do outro que mal tocaram na comida. No fim do jantar, de mãos dadas, caminharam pela praia enquanto as ondas lhes beijavam os pés descalços. Instalou-se um silêncio aconchegante entre os dois. A brisa fez com que os braços nus de Sofia se arrepiassem. Tomás acariciou-a para a aquecer. Quase que era possível ouvir o bater sincronizado dos seus corações. O beijo que trocaram incendiou-lhes os corpos e não mais se desligaram. Completamente hipnotizados um pelo outro, mal conseguiram chegar a casa de Tomás para darem largas à paixão que estivera aprisionada durante tantos anos.

Já completamente desperta, Sofia descobriu uma t-shirt de Tomás e vestiu-a para descobrir de onde vinha o aroma a café. Chegou à cozinha sem fazer barulho e surpreendeu Tomás, de costas para a porta, a preparar um tabuleiro com um belo pequeno-almoço. Para não estragar a surpresa, voltou para o quarto.
Alguns minutos depois, ele entrou no quarto com um tabuleiro recheado com apetitosas iguarias.

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Imagem daqui

- Oh, já acordaste?! – Tomás deu-lhe mais um beijo apaixonado enquanto tentava pousar a comida. Já perdera a conta de quantos foram. Parecia que, num dia, lhe queria dar todos os beijos que não lhe dera nos últimos 15 anos.

- Tu não existes. Eu mereço isto tudo?! Cheira tão bem a café. E o que é isto? Um croissant de chocolate?! – descobriu ela deliciada.

- Ainda me lembro de que eras viciada em chocolate. Espero que continues a gostar. 

Enquanto saboreavam, com gosto, a comida preparada por Tomás, iam trocando carícias. Era como se aquele tempo todo não tivesse passado e voltassem a ser adolescentes.

- Sabes, Sofia, ontem quando te vi tão segura e maravilhosamente bela, apaixonei-me por ti outra vez. Agora que te encontrei, não mais te perderei de vista.

Sofia ouviu aquelas palavras enquanto bebia aquele delicioso líquido castanho muito escuro. O seu coração derreteu-se. As últimas horas tinham sido intensas e felizes mas não tinha a certeza de que estava disposta a abdicar da sua independência para deixar o passado voltar à sua vida.

 

Participam neste Desafio da Caixa de Lápis de Cor da Fátima Bento, as brilhantes ConchaA 3a FaceMaria AraújoPeixe FritoImsilva, Luisa de SousaMariaAna DCéliaGorduchitaMiss LollipopAna MestreAna de DeusCristina Aveirobii yue, os brilhantes  José da Xá e João-Afonso Machado.

Agora também com a participação especial da nobreza na pessoa a talentosa e divertida Marquesa de Marvila

Desafio dos Lápis de Cor #vermelho

Charneca em flor, 31.03.21

15 anos depois

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Sofia dava os últimos retoques no seu visual. Enquanto olhava a sua imagem reflectida pelo espelho, meditava no percurso que fizera até chegar ali.

Embora visitasse os pais com frequência, há muito que deixara de viver com eles. Quando entrara para a faculdade, fora viver com a tia Rosário. Ao libertar-se do amor sufocante dos progenitores, tornara-se numa jovem completamente diferente. A pouco e pouco foi fazendo novas amizades e embrenhou-se a vida universitária. Continuava a ser uma aluna de excelência o que não impedia de ir às festas. Tal como qualquer outra jovem, conheceu um ou outro rapaz com quem namorou. De vez em quando pensava que tinha encontrado o amor da sua vida mas, quando as coisas não corriam de feição, voltava a pensar em Tomás. Mesmo sabendo que cada um deles tinha escolhido o seu próprio caminho.

Embora fosse alguns fins de semana a casa, não tinha o hábito de conviver com os antigos colegas . Apenas se encontrava com Helena. Fora assim que seguira, à distância a vida de Tomás. Por ironia do destino tinha acontecido com Ana e Tomás aquilo que os seus pais tinham temido que acontecesse consigo. Ana e Tomás tinham sido pais de um menino, antes de completarem 20 anos.

Os livros e a escrita continuaram a fazer parte da sua vida embora a sua formação nada tivesse a ver com literatura. Aliás, andava sempre com um caderno onde apontava os seus pensamentos, aquilo que lhe ia acontecendo, as histórias que nasciam no seu íntimo, os seus poemas… A sua colecção de cadernos era famosa entre os seus amigos mas não os mostrava a ninguém.

No seu último ano de faculdade, participara no programa Erasmus e viajara até Milão. A experiência de viver no estrangeiro foi tão enriquecedora que, com um interregno para fazer os exames para finalizar o curso, nunca mais deixou de trabalhar no estrangeiro. Depois de viver e trabalhar países europeus, sentiu-se preparada para realizar um sonho antigo, escrever um livro. Durante 2 ou 3 anos, todos os tempos livres eram ocupados a escrever e a estruturar a sua história. Nada disse à sua tia Rosário porque ela tinha amigos na área editorial. Aquilo que conseguisse, seria por si, pelo seu talento. Sofia tornara-se uma mulher segura e decidida, apostada a vencer fosse em que área fosse graças ao seu esforço.

E foi esse propósito que a conduzira aquele momento preciso da sua existência. Submetera o seu manuscrito a um prémio literário destinado a jovens escritores desconhecidos com menos de 35 anos. Com surpresa, viu o primeiro prémio atribuído ao seu romance. Quando a organização lhe perguntou pelo melhor lugar para receber o prémio e lançar o seu livro, viu nisso a melhor oportunidade para fechar um círculo e voltar à pequena cidade onde crescera.

Sofia sorriu ao olhar naquilo que o espelho lhe devolvia. Naquele dia, ela seria o centro das atenções e com aquele vestido vermelho-sangue sentia-se segura e poderosa, bem diferente daquela adolescente que quase se colava às paredes para que ninguém desse pela sua presença.

Um toque de baton, igualmente, vermelho e estava pronta para o seu momento de glória.

O auditório municipal onde a cerimónia ia decorreu estava à cunha. Toda a gente queria ver a filha da terra. Na primeira fila, os pais e a tia distribuíam sorrisos para a direita e para a esquerda.

A cerimónia decorreu com os elogios da praxe e os discursos emocionados habituais naquelas ocasiões. De seguida seria a sessão de autógrafos. Sofia perdeu a conta a quantos livros assinou e quantas pessoas cumprimentou. A mão já estava dormente mas não queria defraudar as expectativas de quantos ali tinham vindo. Então, viu-o. Levantara a cabeça para perceber se ainda restavam muitas pessoas e reparou num homem que lhe parecia familiar. Era alguém que segurava o seu livro aberto, como se já estivesse a lê-lo enquanto esperava. Sentindo-se observado, ele levantou os olhos do livro e cruzou o seu olhar com o de Sofia. Aqueles olhos cor de avelã eram inconfundíveis, não podia ser outro. Tomás aguardava o seu autógrafo. Nesse momento, Sofia sentiu-se ruborizar ao ponto do seu rosto reflectir o tom do seu vestido. O rosto ardia de tão vermelho que devia estar. Naquele instante, voltou a ser a adolescente tímida que era há 15 anos.

 

Participam neste Desafio da Caixa de Lápis de Cor da Fátima Bento, as brilhantes ConchaA 3a FaceMaria AraújoPeixe FritoImsilva, Luisa de SousaMariaAna DCéliaGorduchitaMiss LollipopAna MestreAna de DeusCristina Aveirobii yue, os brilhantes  José da Xá e João-Afonso Machado.

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