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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

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Eliete - A vida normal, Dulce Maria Cardoso

Charneca em flor, 26.08.21

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Este mês de Agosto tem sido profícuo em leituras também devido ao facto de estar de férias desde dia 15. "Eliete" foi um dos primeiros livros que terminei. 

Um àparte que se impõe, as capas da Tinta da China são lindas, não são?!

Dulce Maria Cardoso não tem muitos livros publicados em comparação com outros escritores portugueses o que transforma cada obra sua numa preciosidade. Não que eu seja uma especialista já que este é, apenas, o segundo livro que leio dela para além das crónicas da Visão. No ano passado, li "O Retorno".

Outra curiosidade é o facto de ter escolhido este livro depois de ter lido este uma vez que, ambos os autores, utilizam a figura histórica de Oliveira Salazar como personagem de ficção.

"Eliete" é a história de uma mulher de 40/50 anos que se vê confrontada com o passar do tempo que lhe traz uma série de problemas como o envelhecimento e a deterioração da sua avó, uma das figuras mais importantes da sua vida. O livro começa num hospital, exactamente porque a sua avó sofre um acidente decorrente da deterioração da sua mente. Esse acontecimento vai despoletar em Eliete uma espécie de análise da sua vida, de quem ela se tornou e de quem ela queria ter sido. Regressamos com ela à sua infância, à adolescência e início da vida adulta. Todos esses pensamentos fazem com que Eliete comece a questionar tudo aquilo que se julgava garantido como o seu casamento, por exemplo.

Dulce Maria Cardoso aborda alguns assuntos muito interessantes como o envelhecimento e o apoio social aos idosos, a doença de Alzheimer ou a influência da internet e das redes sociais na nossa vida e na maneira como nos relacionamos com os outros mesmo com aqueles com quem vivemos. O subtítulo diz tudo, este é um livro sobre a vida normal porque a história de Eliete podia ser a história de qualquer mulher de meia-idade* mas contada de forma magistral como a autora tão bem sabe fazer.

A escrita de Dulce Maria Cardoso é tão cativante mas, ao mesmo tempo, sem grandes complicações o que faz com que a obra se leia com muita facilidade.

Este livro é a primeira parte mas a autora pretende que a história tenha continuação. Infelizmente, algumas circunstâncias da sua vida pessoal têm dificultado o desenvolvimento da história. Espero que  Dulce Maria Cardoso consiga desenvolver o que falta contar desta história porque eu já tenho saudades da Eliete.

"Assustava-me que três dias da minha vida tivessem desaparecido, que por mais que me esforçasse não conseguisse resgatar qualquer memória do que neles se tinha passado. Havia uma ameaça em tudo o que era incompreensível e o apagão, como passei a chamar-lhe, aterrorizava-me. Era natural que o choque da morte do papá tivesse provocado um curto-circuito na minha cabeça, se é que se podia assemelhar o cérebro a uma instalação eléctrica, mas era estranho que eu me lembrasse tão bem de tudo até ficar sozinha no quarto e que não tivesse uma imagem sequer do funeral e do velório do papá. Para onde tinham ido aqueles três dias que continham esses momentos tão importantes?"

 

*expressão horrível  .

"O Retorno" Dulce Maria Cardoso

Charneca em flor, 03.08.20

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Já tenho mencionado que leio poucos livros de autoras portuguesas. Tinha alguma curiosidade em ler Dulce Maria Cardoso porque gosto muito das crónicas que ela escreve para a revista Visão. Este livro foi, realmente, uma boa aposta para me iniciar na obra desta escritora e para despertar em mim a vontade de ler mais livros dela. "O Retorno" transporta-nos para 1975, para um momento da nossa História com o qual a maioria dos portugueses ainda não se reconciliou, na minha opinião. Refiro-me ao regresso daqueles a quem se convencionou chamar "retornados".

A própria autora passou por essa experiência uma vez que, embora tenha nascido em Trás-os-Montes, foi para Angola com 6 meses de vida e também voltou em 1975.

Imagino que Dulce Maria Cardoso tenha partido das suas memórias, e também de alguma investigação presumo, para construir esta narrativa. A figura central da história é Rui, um adolescente de 15 anos que se vê na contingência de vir para a "metrópole" com a família. Tal como milhares de portugueses, Rui e a família não têm para onde ir e acabam por ficar a viver num hotel de 5 estrelas no Estoril. Acompanhamos os últimos momentos de Rui em Angola, o aeroporto antes de embarcarem para Lisboa, a chegada ao hotel e toda a experiência da vida nesse ambiente repleto de pessoas na mesma situação. A autora consegue fazer-nos sentir, através das suas palavras, todas as dificuldades que estas pessoas sentiram. Eram olhadas como estrangeiras no seu próprio país. É uma história dura e difícil de lidar. No entanto acho que, devido a tudo o que temos vivido nos últimos tempos, escolhi o momento ideal para ler este romance. Fez-me olhar de outra forma para o racismo latente na nossa sociedade. O que se vive hoje tem, provavelmente, raízes neste passado recente.

Para além do interesse no tema central d' "O Retorno", a escrita de Dulce Maria Cardoso é brilhante. A maneira como ela escreve um diálogo é muito curiosa. Não utiliza uma única vez os sinais de pontuação típicos dos diálogos mas conseguimos perceber, sempre, que se trata de uma conversa. Também gostei muito da utilização de alguns termos angolanos que eu desconhecia.  Estas palavras tornam o texto ainda mais rico. Aliás sempre achei que as particularidades de cada povo falante de Língua Portuguesa é que a tornam interessante. Muito mais do que a implementação de um qualquer acordo ortográfico.

"E eu tenho tanto medo. Não quero ter medo mas tenho. Se o pai não chega até ao dia da independência é porque não chega mais, é porque não chega mais, é porque está, porque está morto. Ouviste. Sejas tu quem fores desta vez é a sério, não é como os jogos que fazia antes. Se o pai não chega até ao dia da independência mataste o pai, se o pai não chega até ao dia da independência é porque quiseste mandar os cabrões dos pretos matar o pai. Sejas tu quem fores, tens de me ouvir, não estou a brincar. Não me vais deixar à espera para sempre."

Lotaria Literária #124

Charneca em flor, 03.05.20

"Um dia fomos passear à barra do Cuanza, a mãe não tirava os olhos do mato que ficava para lá das bermas do alfalto e disse, gostava de ir ao coração desta terra, ao sítio de onde os pássaros gritam, um mato tão fundo onde nem sequer a luz do sol consegue entrar, gostava de sentir a sombra escura desta terra."

O Retorno

Dulce Maria Cardoso

Tinta da China

ISBN  978-989-671-116-0

 

Nunca li nenhum livro da Dulce Maria Cardoso embora leia regularmente as crónicas que escreve para a revista Visão. Estas crónicas aguçaram-me o apetite para os seus livros. Aqui há dias li um post da Rita da Nova sobre um dos livros mais recentes da Dulce Maria Cardoso e, na interacção com a Rita da Nova, ela aconselhou-me a começar por este "O Retorno". Já cá mora para o ler a seguir ao clássico gigantesco que ando a ler.