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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

"Uma Pequena Vida", Hanya Yanagihara

Charneca em flor, 01.02.23

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Ler "Uma Pequena Vida" é, antes de mais, um grande desafio. Afinal, são quase 700 páginas cuja leitura ocupou cerca de 19 horas, distribuídas ao longo de 20 dias. Durante esse tempo, senti-me completamente dominada por este leitura e refém da história criada por Hanya Yanagihara.

O ponto de partida é amizade que se desenvolve entre quatro jovens que se conhecem na Universidade, Willem, JB, Malcolm e Jude. Os laços que se forjam entre eles são tão fortes que se mantêm, com altos e baixos, por toda a vida. Em "Uma Pequena Vida" acompanha-se a entrada na vida adulta bem como as décadas seguintes. Enquanto os jovens procuram a auto-realização vão percebendo que a saúde física e psicológica do mais brilhante de todos, Jude, se vai deteriorando ao longo do tempo. Jude foi sempre o mais enigmático e misterioso. Em tantos anos de amizade, nenhum deles soube nada sobre a vida passada do amigo. E é no passado que se encontram todas as respostas.

Hanya Yanagihara criou uma história que tem tanto de fenomenal como de doloroso. As personagens estão muito bem desenvolvidas e é impossível não nos apaixonarmos por elas. Tal como pessoas reais, têm qualidades e defeitos e nem sempre têm as melhores atitudes, como acontece na vida. 

"Uma Pequena Vida" tem passagens muito bonitas que nos fazem acreditar no valor da amizade e do amor mas, ao mesmo, são descritas situações tão cruas e duras que conseguem provocar sensações físicas nos leitores. Em certos momentos, senti-me verdadeiramente nauseada e tive que parar a leitura porque não aguentava nem mais uma linha.

Admito que caí na "armadilha" da autora. Hanya Yanagihara manipula o leitor com tal mestria que, por mais "bofetadas" que as suas palavras me dessem, eu não conseguia parar de ler na esperança de que esta vida não fosse assim tão dramática.

Este livro faz-nos calçar os sapatos do outro, daquele que vive em constante sofrimento, daquele que tem atitudes incompreensíveis mas que não podemos julgar porque não conhecemos que caminho teve que percorrer até chegar ao momento em que se cruza connosco.

Não posso, em consciência, aconselhar esta leitura mesmo que "Uma Pequena Vida" tenha conquistado um lugar de destaque nos livros da minha vida. Este não é um livro para qualquer pessoa. Só alguém com uma grande capacidade de tolerância à dor será capaz de levar esta tarefa até ao fim. Não é uma leitura fácil mas eu sinto-me orgulhosa por ter conseguido ultrapassar a este desafio.

 

"Sentiu o aguilhão da culpa depois de falar com um e outro, mas a decisão estava tomada. Seria melhor assim, tinha a certeza: não trazia nada de bom às vidas deles. Era uma coleção de problemas bizarros, não mais do que isso, e, a menos que de alguma maneira se fizesse parar, consumi-los-ia com as suas necessidades. Exigiria
sempre mais, devorando-os a6te lhes deixar apenas os ossos. Encontrariam maneira de resolver cada dificuldade que eles lhe apresentassem e ele sempre encontraria novas maneiras de os destruir. Estariam de luto durante algum tempo, claro, porque eram pessoas boas - as melhores do mundo - ele lamentava que assim tivesse de acontecer, mas acabariam por perceber que tinham ficado melhor depois de ele partir. Dar-se-iam conta de todo tempo que Ihes fora roubado e concluiriam que ele fora um ladrão que lhes sugara a energia e a atenção até à ultima gota. Tinha esperança de que perdoariam, de que acabariam por ver que esta era a sua maneira de lhes pedir perdão. Estava a libertá-los. Eram as pessoas que ele mais amava no mundo e é isso que se faz quando se ama alguém: da-se-lhe a liberdade."

 

Desafio Arte e Inspiração 2.0, semana #4

Campo de Papoilas, Claude Monet

Charneca em flor, 12.10.22

Anabela sentiu-se dominada pela emoção quando abriu a porta. Aquela casa tinha sido testemunha de alguns dos melhores momentos da sua infância e adolescência. Ali tinha morado a sua tia-avó , Sofia, a irmã mais velha da sua avó materna.

Sofia vivera de forma muito diferente daquilo que era habitual na sua geração. Nunca fizera aquilo que era esperado de uma mulher. Não casara, não tivera filhos e tivera sucesso numa profissão muito pouco feminina. Apesar de ter tido uma vida muito preenchida, Sofia era muito dedicada à família, amara profundamente todos os seus sobrinhos mas a ligação com Anabela era muito especial. Sofia tinha acabado de se reformar quando Anabela nasceu e acabou por ser uma grande ajuda para a jovem mãe. A proximidade entre tia-avó e sobrinha, nos primeiros tempos de vida, tinha forjado a relação privilegiada entre ambas. A casa da tia Sofia era o refúgio preferido de Anabela. Adorava explorar as centenas de livros que a tia possuía ou a ouvi-la contar as peripécias das inúmeras viagens.

No testamento, Sofia deixado a casa à sobrinha-neta bem como todo o recheio.Embora Anabela não desejasse alienar a herança da tia, a conjectura económica estava a dificultar a manutenção da casa. Ela achava que, ao vender a casa da tia Sofia, estava a destruir as suas melhores lembranças. Por outro lado, deixar que a casa se deteriorasse também não era uma boa forma de honrar a sua memória. Anabela acabara por decidir deixar que outros construíssem novas memórias felizes por ali. Só que retirar os objectos pessoais da tia não era uma tarefa nada fácil.

- Mãe, olha que giro. – Florbela, a filha adolescente de Anabela, tinha-se oferecido para a acompanhar. Aquela casa, repleta de objectos fantásticos, fascinava-a. Infelizmente, Florbela não tinha privado muito com a idosa porque, nos últimos anos, a demência tinha roubado a consciência daquela mulher tão especial.

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Nas mãos de Florbela estava uma caixa com ar envelhecido exibindo uma reprodução de um quadro do pintor preferido da tia Sofia. Algumas lágrimas afloraram aos olhos de Anabela. A filha encontrara um puzzle que fora comprado em Paris, no Museu d' Orsay. Quando fizera 15 anos, a tia, já com uma ligeira demência, insistira que era preferível oferecer experiências em vez de objectos. Assim o seu presente de aniversário fora uma viagem a Paris. “Campo de papoilas", de Claude Monet, tinha sido um dos quadros que tinham visto ao vivo e a tia não resistira a comprar aquele puzzle. Uns dias depois do regresso, a tia espalhara as peças em cima da mesa de jantar e começara a tentar construir o puzzle. Anabela prometera ajudar mas o fulgor da juventude levara-a a adiar várias vezes as visitas à tia. O puzzle nunca tinha sido terminado apesar de ter estado mais de um ano em cima da mesa de jantar. Alguém acabara por o arrumar até aparecer nas mãos de Florbela.

A jovem adorava aquele tipo de actividades. A mesa da sala de jantar voltou a servir de suporte às peças recortadas. Anabela sorriu quando viu a concentração com que a filha se debruçava sobre a mesa.

Quer mãe quer a filha embrenharam-se de tal forma nas tarefas que desempenhavam que não deram pelas horas passarem. Anoitecia quando Florbela chamou pela mãe:

- Consegui, consegui. Mãe, consegui.

Onde antes reinava a confusão, surgira a imagem de um dos mais belos quadros de Monet. Anabela ficava sempre impressionada com a facilidade e rapidez com que a filha fazia puzzles por maiores ou mais complicados que fossem.

- Só falta uma peça. Queres ser tu a colocar a última? – sugeriu Florbela.

- Pode ser. Deixa cá ver.

Assim, anos depois, o “Campo de Papoilas" estava, finalmente, completo. Pela janela entreaberta, entrou uma brisa morna mas ligeira. Anabela olhou na direcção da janela e pareceu-lhe vislumbrar o rosto sorridente da sua velha tia.

 

Este texto foi escrito no âmbito do Desafio de escrita Desafio de Escrita Desafio Arte e Inspiração V2.0 lançado pela querida e inexcedível Fátima Bento e no qual participam, para além da Fátima e desta que vos escreve, os seguintes brilhantes autores: Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yueCéliaCharneca Em FlorCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso Machado, o José da XãMaria AraújoOlga.

 

Já agora, aproveito para contar que tenho, efectivamente, um puzzle com este quadro que nunca terminei. Um dia, a minha manicura estava a contar-me que a filha de 15/16 adorava fazer puzzles. Fiquei surpreendida porque não estava à espera que uma miúda dessa idade ligasse a estas actividades. Assim dei-lhe o puzzle e ela fê-lo numa tarde. Mais tarde, devolveram-me o puzzle e acabei por emoldurá-lo. Assim, no meu escritório, tenho um Monet e um Munch.

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Desafio Arte e Inspiração V2.0, semana #3

The Lady off Shalott, John William Waterhouse

Charneca em flor, 05.10.22

A sua alma estava tão sombria como aquele recanto do rio. A dor que sentia oprimia-lhe o peito e impedia-a de respirar.

Sempre que estava triste, Madalena refugiava-se ali. Olhar para a corrente, acalmava-lhe o coração. A constante renovação da água que passava ajudava-a a acreditar que, fosse qual fosse o seu problema, a solução iria surgir tão clara e límpida como o rio.

Desta vez, nada acalmava Madalena. Não conseguia impedir as lágrimas que lhe molhavam o rosto. Nunca tinha conhecido um tal sofrimento.

A jovem sentira-se diferente desde criança. Embora se sentisse amada pela família, a população da sua aldeia ribeirinha olhava para ela com desconfiança. Os seus cabelos ruivos causavam estranheza e receio por serem tão pouco frequentes. Os aldeões associavam a cor dos seus cabelos ao fogo do inferno, acreditavam que Madalena transportava o mal no seu coração. Na verdade, a jovem nunca se tinha apercebido muito dessa animosidade para com ela porque a família sempre a tinha protegido.

A razão destes sentimentos incompreensíveis, iniciados logo quando ela nascera, tinha a sua origem num passado distante. Há muitas dezenas de anos, existira outra ruiva na família, Helena de seu nome. O quadro que a retratava estava pendurado na biblioteca da quinta.

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A antepassada de Madalena sofria de distúrbios psiquiátricos graves, num tempo em que essas situações eram justificadas por motivos muito pouco científicos. No caso de Helena fora a própria família a alimentar os rumores de que ela estava possuída pelo demónio. As tentativas de exorcismo foram constantes mas todos os sacerdotes saíam derrotados de tais sessões. O seu estado psicológico foi-se agravando até ela se ter suicidado. Ou pelo menos fora isso que se pensara já que o seu corpo nunca fora encontrado. Helena também gostava muito de se isolar junto ao rio, perto do ancoradouro. Nunca se teve a certeza do que aconteceu no dia em que ela desapareceu. O primeiro sinal de alarme fora o fogo. As árvores nas margens do rio tinham-se incendiado sem se perceber como. A população da aldeia e os empregados da quinta conseguiram controlar o fogo antes que chegasse às casas mas grande parte das colheitas tinha-se perdido, irremediavelmente. Só depois se deu pela ausência de Helena. O pequeno barco, habitualmente ancorado, fora encontrado no meio do rio sem ninguém lá dentro por isso concluíra-se que ela se tinha lançado ao rio para se afogar depois de provocar o incêndio . Os aldeões acreditavam que o seu fantasma nunca abandonara a margem do rio e afirmavam ouvir o seu choro aflitivo em dias de nevoeiro tão sufocante como o fumo de um fogo ardente.

Quando se soubera que voltara a nascer uma menina ruiva naquela família, depressa correu a notícia de que Madalena era uma reencarnação de Helena. Os seus entes queridos não alimentavam estas superstições mas tinham muito receio da maldade das pessoas por isso evitavam que ela tivesse contacto com as pessoas da aldeia. Madalena regressara à aldeia para as férias de Verão depois de mais um ano lectivo no colégio. Quando o automóvel passou próximo da aldeia, Madalena percebeu que havia mais movimento e animação do que era habitual. A aldeia estava em festa honrando a santa padroeira. A jovem ficou curiosa. Não fazia ideia de como seria tal festividade. A brisa de Verão transportava o som da música até à sua janela. Nunca percebera porque é que os seus pais não queriam que ela fosse à aldeia. A curiosidade superou o respeito às determinações dos pais e caminhou até à aldeia. Nada a preparara para o horror que leu nos rostos de quem a olhava. Ela passava, as pessoas escondiam as crianças e corriam a fechar-se em casa. Um rumor de vozes foi aumentando até ela perceber que as pessoas diziam: “bruxa", “possuída”, “fora daqui", “desaparece", “não te queremos aqui". Alguém atirou a primeira pedra e todos se seguiram. Madalena foi apedrejada e escorraçada da aldeia. Não compreendia o que se passava mas correu o mais que pode para fugir dali. Percebeu que as pessoas tinham medo dela e sentiu-se mais sozinha do que nunca.

Nem a beira do rio a conseguiu acalmar. Olhou para o pequeno barco no ancoradouro e teve vontade de fazer como a sua antepassada Helena, lançar-se ao rio e desaparecer.

 

Este texto foi escrito no âmbito do Desafio de escrita Desafio de Escrita Desafio Arte e Inspiração V2.0 lançado pela querida e inexcedível Fátima Bento e no qual participam, para além da Fátima e desta que vos escreve, os seguintes brilhantes autores: Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCéliaCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas,

 

Desafio Arte e Inspiração V2.0, semana #2

Fado, José Malhoa

Charneca em flor, 29.09.22

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José Arnaldo era uma figura mítica de Alfama. Com um bigode trocista e andar gingão, percorria o bairro várias vezes ao dia. Ninguém sabia bem como ele se governava porque ninguém o via trabalhar. Cada vez que punha a mão no bolso, saía de lá um grosso maço de notas com que distribuía rodadas por aqueles que se arrastavam pelos bancos corridos das tabernas. Ao serão, era mestre na guitarra portuguesa, os mais talentosos fadistas de Alfama não o dispensavam. O sorriso malandro conquistava inúmeros corações femininos. Quando ele passava, assobiando, era vê-las a correr para as janelas. Ah, quantos corações partidos mas ele nunca caía nessa armadilha. Ele queria continuar livre como os passarinhos nos beirais dos telhados.

Naquela manhã, o seu coração palpitou acelerado. Na sua frente estava a mulher mais bela que ele alguma vez vira. José Arnaldo vislumbrou-a quando saía de um belo automóvel estacionado à entrada de uma rua estreita. A mulher caminhava de braço dado com um figurão enfatuado, qual pavão em rito de acasalamento. Os dois desconhecidos encaminhavam-se para uma daa casas secundados por um pobre motorista carregado de malas.

Sorrindo, tirou o chapéu e cumprimentou o casal. O homem correspondeu embora com desdém e ela sorriu timidamente, baixando a cabeça.

Os dias foram passando e os passos de José Arnaldo conduziam-no àquela rua estreita. Ele bem assobiava e cantava, apesar de estar longe de ser um rouxinol. Todas as janelas se abriam menos aquela que ele mais desejava. José Arnaldo descobrira, pela vizinha do lado, que ela se chamava Maria das Dores e estava cada vez mais obcecado a misteriosa mulher. A vizinhança partilhava da sua curiosidade e já se tinha apurado que o figurão com quem ela chegara era do governo. Através da senhoria, soubera-se que ele tinha pago 6 meses de renda adiantados. José Arnaldo depressa se apercebeu da rotina daquela casa. Maria das Dores saía ao sábado à tarde para ir lanchar à leitaria da praça e ao domingo para ir à missa. Os víveres eram-lhe entregues em casa pelo moço de recados da mercearia. José Arnaldo já tinha conversado com o miúdo que lhe contara que ela cantava muito bem. Ouvia-a cantar antes de bater à porta. O homem que a sustentava aparecia sempre nos mesmos dias da semana, ao fim da tarde e ficava até à meia-noite.

José Arnaldo engendrou um plano para a fazer aparecer. A ideia surgira-lhe quando ouviu a vizinha do lado contar que a jovem cantava o fado como ninguém.

- Como é que sabe isso, Sra. Josefa? A sua vizinha nunca se deixa ver. – perguntou José Arnaldo.

- Ouço-a do meu quintal porque as janelas das traseiras estão sempre abertas de par em par. E olha que ela canta melhor que muitas cantadeiras com quem tu tocas, meu rapaz.

Numa noite em que Maria das Dores não recebia o “amigo", José Arnaldo, munido da sua guitarra portuguesa, plantou-se debaixo da janela e cantou o fado, com mais emoção do que talento. Todos os moradores se assomaram às portas e janelas e apreciaram o espectáculo. O vulto dela via-se através das cortinas.  O apelo do trinado da guitarra foi mais forte e ela apareceu, cantando aquele fado com ele, e depois outro e mais outro. Toda a noite se tocou e cantou na rua mais estreita de Alfama. Os corações dos dois inflamavam-se de paixão e eles ficaram presos pelo olhar. A magia só se quebrou quando um vizinho rabugento lembrou que o dia seguinte era de trabalho: “ Há aqui quem queira dormir, seus malandros.”. Todos se recolheram. Maria das Dores abriu a porta e deixou José Arnaldo entrar. A partir daquela noite, o marialva ficou preso a uma só mulher.

Nos dias em que o figurão não aparecia, era José Arnaldo que aquecia a cama de Maria das Dores. Durante meses, tudo correu de feição mas as desconfianças foram-se instalando no ricaço. Num dia em que não era esperado, apareceu e apanhou os dois amantes nos lençóis que ele mesmo comprara. Seguiu-se uma cena de faca e alguidar com José Arnaldo e Maria das Dores a serem escorraçados para o meio da rua quase nus. Nada que surpreendesse os moradores do bairro.

Traidor que traí traidor tem cem anos de perdão. O figurão já tinha mulher mas prometera casamento a Maria das Dores para a convencer a abandonar a aldeia. No bairro todos gostavam de José Arnaldo. Os moradores humildes daquelas ruas tinham-se apaixonado pela voz de Maria das Dores e pela sua história. Ela foi aceite como se sempre tivesse sido do bairro. Em pouco tempo, tornou-se na cantadeira mais apreciada da cidade e mesmo do país. A casa de fados enchia-se todas as noites. Ela nunca mais voltou para a aldeia e eles viveram a paixão mais incendiária que aquele bairro alguma vez conheceu.

 

Com algumas horas de atraso mas cá está o texto escrito no âmbito do Desafio de escrita Desafio de Escrita Desafio Arte e Inspiração V2.0 lançado pela querida e inexcedível Fátima Bento e no qual participam, para além da Fátima e desta que vos escreve, os seguintes brilhantes autores: Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCéliaCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas,

Desafio Arte e Inspiração V2.0, semana #2

Young Mother Sewing, Mary Cassatt

Charneca em flor, 21.09.22

A mãe, de quem Francisca sempre fora muito próxima, não achara graça nenhuma à sua decisão de ir sozinha naquela viagem a Nova Iorque mas não a conseguira demover. Já a sua idosa, mas lúcida, avó tinha-a incentivado. Apesar dos seus 98 anos, a avó Maria Francisca conservava o brilho no olhar e o espírito aventureiro pelo qual norteara a sua vida. Maria Francisca vivia cada conquista da neta como se fosse sua. Afinal, antes de casar e ser mãe, também fizera uma viagem solitária até França da qual só falava de forma muito superficial guardando, religiosamente, os pormenores para si.

Francisca estava delirante por estar ali. Afinal, Nova Iorque era uma cidade mágica. Percorrer aquelas ruas proporcionava uma estranha sensação. Ao virar de cada esquina, mais do que descobrir uma nova cidade, recordava-se tudo aquilo que já vivemos em frente a uma tela de cinema ou a um ecrã de televisão.

Naquela tarde, Francisca deambulava pelas salas do Metropolitan Museau of Art. Ela estava genuinamente impressionada com a colecção do museu. Nem queria acreditar que estava tão perto daqueles quadros. De repente, imobilizou-se em frente a uma obra ternurenta e encantadora. Mas não foi a beleza do quadro que a espantou. Francisca reconheceu o rosto infantil que a fitava. Era o seu próprio rosto quando tinha 5 ou 6 anos. Só que ela não se lembrava de ter posado para um quadro e a outra figura feminina também não era ninguém que ela conhecesse. De qualquer forma, a obra datava de 1900 por isso não podia ser ela. Afinal, só nascera em 1989. Mesmo a sua avó, de 98 anos, nascera no início dos anos 20. Quem seria aquela criança? A imagem perturbou Francisca de tal maneira que ela deu a visita por terminada mas não saiu de lá sem comprar uma reprodução do quadro, “Young Mother Sewing".

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Nos dias seguintes , Francisca empreendeu numa investigação sobre aquele quadro descobrindo que a autora, a americana Mary Cassatt, vivera grande parte da sua vida em França onde desenvolveu a sua arte. A maioria da sua obra debruçou-se, precisamente, sobre as relações entre mães e filhos. O “Young Mother Sewing" foi executado em França por isso Francisca presumia que a mulher e a criança retratadas fossem francesas.

No regresso, Francisca foi visitar a mãe e a avó levando a reprodução debaixo do braço. Depois de muitos beijos e abraços, ela entregou o embrulho à avó:

- Olha, vó, vê só o que encontrei num museu.

A jovem não estava preparada para a emoção que viu surgir no rosto da sua avó quando abriu o embrulho. As lágrimas percorriam o seu rosto enrugado enquanto chorava compulsivamente. Tanto Francisca como a mãe ficaram aflitas sem perceber o que se passava. Finalmente, a avó lá se foi acalmando e perguntou:

- Onde encontraste isto, minha querida?

Francisca contou tudo desde o momento em que se reconheceu naquele quadro até ao que tinha apurado sobre as circunstâncias que o rodeavam:

- Fiquei muito curiosa quando percebi que esta criança era igualzinha a mim. Como é possível que uma criança francesa, que nasceu no séc. XIX, seja tão parecida comigo?

A avó sorriu tristemente:

- Eu sei quem é essa criança.

Perante os semblantes estupefactos de Francisca e da mãe, a avó afirmou:

- É a minha mãe, Françoise.

- Como? A tua mãe era a avó Celestina. Não era?! – Carlota, a mãe de Francisca, estava muito confusa.

- A avó Celestina criou-me e amou-me como uma filha mas a minha verdadeira mãe era francesa. O meu pai conheceu-a quando esteve em França na Grande Guerra. Ele ficou muito ferido na Batalha de La Lys e foi acolhido pela família de Françoise. Os dois acabaram por se apaixonar e casar. O meu pai trouxe Françoise para cá quando regressou à aldeia. Ela ficou grávida e eu nasci. Só que a minha mãe Françoise nunca se adaptou a Portugal e acabou por nos abandonar, a mim e ao meu pai. Anos mais tarde, ele conseguiu a anulação do casamento para poder desposar a minha mãe Celestina. Eu sempre soube que ela não era a minha verdadeira mãe. Por mais amor que a Celestina me desse, eu sentia sempre um vazio. Apesar do meu pai não concordar, eu comecei a trabalhar muito cedo e juntei todo o dinheiro que consegui. Um dia resolvi partir para França, enfrentando muitas dificuldades, para a ir conhecer.

A avó parou para ganhar fôlego. Carlota e Francisca olhavam-na com ansiedade.

- O meu pai tinha guardado algumas informações sobre Françoise e a família. Sem ele dar conta, eu levei tudo isso comigo e consegui descobrir a minha mãe. Não foi um encontro fácil, afinal ela tinha-me abandonado mas eu acabei por compreender os seus motivos. Quando me vim embora, ela deu-me um esboço desse quadro que lhe tinha sido oferecido pela autora como forma de agradecimento pela paciência que tivera para posar para ela, ainda criança. Tu sempre eras muito parecida com ela, Francisca.

Naquele momento, as lágrimas bailavam no rosto das 3 mulheres.

- Mas porque é que nunca nos contou nada? – indagou Carlota.

- Primeiro que tudo, e enquanto foram vivos, por respeito ao meu pai e à minha mãe Celestina. Depois por amor e respeito ao teu pai, Carlota.

- Ao meu pai? Mas o que é que ele tem a ver com esta história?

Maria Francisca olhou bem no fundo dos olhos da filha.

- Porque eu trouxe muito mais dessa viagem a França do que as recordações da minha mãe biológica.

 

Texto escrito no âmbito do Desafio de escrita Desafio de Escrita Desafio Arte e Inspiração V2.0 lançado pela querida e inexcedível Fátima Bento e no qual participam, para além da Fátima e desta que vos escreve, os seguintes brilhantes autores: Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCéliaCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas,

 

Vários Círculos

Charneca em flor, 02.02.22

Depois de uma fila imensa, entrei, finalmente, no Museu Guggenheim. Já era o segundo dia da minha viagem a Nova Iorque que dedicava a museus.

No dia anterior, enquanto passeava por Central Park, vislumbrara o edifício do museu e tinha decidido que tinha que lá entrar. O aspecto arquitectónico exterior era, ele próprio, uma obra de arte que me deixou intrigada sobre aquilo que albergava no interior.

Aquilo que fui encontrando no Museu impressionou-me pela estranheza. Solomon R. Guggenheim criou uma impressionante colecção de arte moderna o que o levou a criar a Fundação Solomon R. Guggenheim bem como o museu. Tenho que confessar que nunca fui muito entendida em arte mas sempre apreciei objectos bonitos mas que eu conseguisse compreender. Isto significa que a arte moderna e contemporânea sempre escapou ao meu entendimento.

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Inesperadamente, um quadro chamou-me a atenção pela motivo e pelas cores electrizantes. Era Einige Kreize (Vários Círculos) de Wassily Kandinsky. Senti-me atraída, de forma magnética, fiquei diante dele e deixei que comunicasse comigo. Embrenhei-me por aquilo que o quadro mostrava e compreendi a sua mensagem. Pelo menos, a mensagem que o artista me transmitiu a mim. Olhei todos aqueles círculos e vi a minha vida. Cada objecto colorido daquele quadro representava as pessoas e os ambientes que foram fazendo parte da minha vida ao longo dos anos. Kandinsky pintou círculos maiores e mais pequenos, uns tão próximos que tocam nos outros e até se sobrepõem. As pessoas que passam pela nossa vida são assim. Num momento são-nos muito próximas mas depois vão-se afastando até quase desaparecendo. Nós somos pessoas diferentes consoante os ambientes em que nos movemos. Há ambientes que nunca se tocam mas há outros que se cruzam quase se sobrepondo. E foi isso que aquele quadro me disse. Eu vi a minha vida naqueles círculos coloridos. O quadro fascinou-me tanto que quando dei por mim tinha chegado a hora de encerramento e quase que eu ficava fechada no interior do Museu Guggenheim.

 

Texto escrito para o Desafio Arte e Inspiração organizado pela Fátima Bento e com a participação de Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yueCélia, Charneca Em FlorCristina AveiroImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSetePartidas

Natal em tempo de pandemia

Charneca em flor, 14.12.21

 

21273791_ERk3P.jpegA noite começava a cair e as luzes coloridas alegravam as ruas. As poucas pessoas que se viam seguiam atarefadas procurando chegar a casa o mais depressa possível para se reunirem com as suas famílias na noite mais mágica do ano, a Véspera de Natal. Quem andava por ali seguia tão absorto com os seus problemas que nem reparava num homem jovem que percorria as ruas desesperadamente.

José procurava uma farmácia aberta mas, todas as que encontrava, já tinham encerrado para que os seus funcionários celebrassem o Natal. Aquele dia preparava-se para ser um dos dias mais importantes para ele e para a sua família. No entanto, o eminente acontecimento estava a ser ensombrado pelas regras que a terrível pandemia tinha imposto no país.

Já tinham passado quase dois anos desde que se descobrira uma doença de tal modo contagiosa que se tinha espalhado por todos os países do Mundo provocando uma pandemia. Cada país tinha lutado o melhor que podia contra as consequências desta ocorrência mas tinha sido impossível impedir que aquela doença afectasse os cuidados de saúde, a economia, os negócios, a vida em comunidade, a maneira como as pessoas se relacionavam umas com as outras ou usufruíam dos direitos outrora conquistados.

O governo do país de José tinha decretado que, para aceder aos espaços públicos, todos os cidadãos teriam que apresentar um teste negativo para a doença. Só que o homem não conseguia encontrar nenhum sítio disposto a realizar o dito procedimento o que o estava a afastar do lugar onde ele desejava estar, acima de tudo e de todos, ao lado da mulher da sua vida. Eles estavam prestes a conhecer a felicidade mais plena mas nunca tinham imaginado que não estivessem juntos naquele momento.

Quando estava prestes a desistir, viu uma luz a piscar. Por momentos, pensou que era a estrela que os Reis Magos viram, a Oriente, no primeiro Natal mas tratava-se de uma cruz verde que assinalava a farmácia de serviço. Apesar de iluminado, não se via vivalma no interior do espaço. De repente, a porta automática abriu-se assustando o pobre José. Com a esperança de encontrar ali a solução para o seu problema, entrou. Enquanto explicava a situação à simpática farmacêutica que lá se encontrava, viu surgir um ser etéreo vestido de bata azul, máscara e viseira. Para ele, aquela pessoa transformou-se no seu anjo da guarda porque lhe fez o tão aguardado teste, felizmente, negativo.

Assim que pôde saiu a correr a tal velocidade que parecia voar em direcção ao carro enquanto telefonava à sua amada:

- Maria, meu amor, consegui. Vou a caminho do hospital. Diz ao nosso filho que espere mais um pouco para nascer.

Algumas horas depois, Maria e José recebiam, nos braços, o filho tão desejado. Porque não há tempestade ou pandemia que seja capaz de afastar aqueles que se amam.

Feliz Natal 

 

Este conto de Natal foi escrito para responder ao desafio lançado pela querida imsilva do blogue pessoas e coisas da vida.

Serve também de homenagem todos os profissionais de saúde, onde me incluo, que continuam, dia após dia, a desempenhar o seu papel no combate à pandemia. Que tenham todos um Santo e Feliz Natal.

P.S. - Foto captada no Mercadito de Trento, Itália, no Natal de 2016.

 

O presente difícil de encontrar

Os Desafios da Abelha | Conto de Natal de 2021

Charneca em flor, 30.11.21

Nos dias anteriores, a cidade tinha sido afectada por um enorme nevão. Na televisão, as autoridades de segurança mostravam-se muito preocupadas com a segurança rodoviária. Só que a véspera de Natal chegara e as pessoas queriam fazer as compras de última hora, como era costume. Nada as fazia ficar em casa, nem sequer a neve.

Os limpa-neves trabalhavam sem descanso mas, assim que acabavam de limpar uma estrada, ela voltava a ficar coberta de neve. Mesmo assim, os parques de estacionamento da superfícies comerciais apresentavam-se quase cheios. Apesar das péssimas condições atmosféricas, as pessoas arriscavam fazendo deslocações, nem que tivessem que estar horas numa fila de trânsito. Tudo valia a pena para salvar o Natal.

Contra todas as adversidades, havia alguém que se deslocava, freneticamente, de centro comercial em centro comercial, de loja em loja. Os engarrafamentos não o preocupavam. Aquele senhor, bonacheirão, vestido de vermelho, deslocava-se num trenó. Mas não era um trenó qualquer, era puxado pela experiente Rena Rudolfo. Não havia engarrafamento, cruzamento, semáforo ou rotunda que a parasse porque Rudolfo se deslocava pelo céu, não voando que isso deixava para os pássaros, mas pulando de nuvem em nuvem. Na noite mais mágica do ano, era vê-los, Pai Natal e Rudolfo, saltitando pelos céus.

Só que, naquele ano, o Pai Natal começou a ser avistado muito antes de a noite cair. Um menino tinha-lhe escrito uma carta muito comovente mas tinha-o colocado perante uma situação complicada. O pedido não se conseguia satisfazer na fábrica de brinquedos do Pólo Norte. Sendo assim, o Pai Natal andava, tal e qual o mais comum dos mortais, a tentar comprar aquilo que o menino, João de seu nome, tanto ansiava. Na sua busca infrutífera foi estacionando em vários locais surpreendendo os incautos transeuntes embora a maioria pensasse que se tratava de uma mera estratégia de marketing.

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O céu estava a escurecer porque o dia ia chegando ao fim e o Pai Natal não resolvia a sua questão. Até que teve a ideia de ir consultar um colega que também costumava trabalhar nesta época do ano, o Menino Jesus. Com a ajuda da sua fiel Rena Rudolfo, foi até ao Paraíso expôr o seu problema. Depois de ser muito bem recebido, contou a situação o mais depressa que conseguiu. O Menino Jesus riu-se com gosto dizendo:

- Querido amigo, como é que é possível que um homem com a tua experiência esteja a fazer um problema tão grande dessa situação?! Procura bem dentro de ti, no coração, que vais encontrar a solução. Até te vou dar uma ajuda. – E deu-lhe uma caixa vazia enquanto se despedia uma vez que não havia tempo a perder. Era chegada a hora de levar os presentes a todas as casas do mundo.

O Pai Natal compreendeu tudo, finalmente. E, de nuvem em nuvem, lá foi saltitando e deixando presentes em todos os lares, dos mais humildes aos mais ricos.

Na manhã de Natal, a neve continuava a cair lá fora. Na grande casa que se erguia no cimo da colina, inúmeras crianças saíam dos seus quartos e desciam as escadas, com grande algazarra, até à árvore de Natal da sala comum. No orfanato do Menino Jesus, nenhuma criança ficava sem presente mas os olhos que mais brilhavam eram os do João porque a sua prenda era a mais reluzente. No momento em que se preparava para abri-la, soou a campainha.

- Vem, João, os teus pais chegaram para te levar. Vais passar o dia de Natal com a tua nova família.

Da caixa entreaberta espalhou-se no ar o doce aroma do amor. O desejo do pequeno João tinha sido realizado. O presente que pediu ao Pai Natal foi apenas este, Amor.

 

Este pequeno conto, inspirado na imagem que o ilustra, foi escrito no âmbito do desafio lançado pela Ana de Deus, inspirado na iniciativa anual da Mãe Natal dos Blogs do Sapo, imsilva.

Desafio Arte e Inspiração #9

Mentes perturbadas

Charneca em flor, 10.11.21

João não tinha muitos amigos. Sempre fora um miúdo estranho. O amor extremo que a mãe lhe devotava nunca a deixou perceber que o seu filho não era igual às outras crianças. Aos seus olhos, o seu filho era perfeito. Durante muitos anos, esperara por ele que só chegara quando já não contavam que pudesse acontecer.

Quando João nasceu, os pais já estavam casados há 15 anos. Aquela criança era a realização de um sonho. De tão imaginado e desejado, João tornara-se num menino da mamã. O pai, pessoa introvertida, colocara-se sempre à margem do seu crescimento. Não é que não o amasse, mas não conseguia penetrar naquela simbiose perfeita entre mãe e filho. Também ele jamais suspeitara que algo no interior da mente do seu filho não funcionava da maneira que seria expectável.

Os anos foram passando e o João foi crescendo sem sair muito debaixo da asa da mãe. Na escola ficava sempre sentado perto da professora e nunca saía para o recreio. A interacção com as crianças da sua idade era mínima. Na verdade, João era incapaz de olhar os outros nos olhos e pouco falava. No entanto, era o aluno que tinha os melhores resultados desde que não fosse preciso falar com ninguém. A mãe, quando interpelada pela professora, conseguia arranjar sempre justificações. Obviamente, que ela já tinha reparado que João tinha muita dificuldade em olhá-la de frente. Aliás, às vezes até achava que o seu filho ficava de olhar vazio, perdido nos caminhos tortuosos da sua mente. Só que, para si, a natureza do seu filho era assim, calado e tímido, e a ela restava-lhe aceitá-lo e amá-lo.

Nada preparara aqueles pais para aquilo que estava por vir. Certa noite, acordaram com um estranho barulho que vinha do telhado. Com o medo a dominá-los, avançaram pelo corredor em direcção à porta. Não se aperceberam que o filho não estava na cama. Com cautela, saíram para o pátio descobrindo que o filho se equilibrava em cima do telhado enquanto gritava palavras incompreensíveis.

A mãe começou a chorar compulsivamente porque já estava a imaginar o filho morto no chão do pátio.

- João, o que estás aí a fazer? Como é que foste aí parar? – o pai, embora assustado, tentava manter-se calmo.

- Pai, ajuda-me. Eu preciso de chegar ali a cima.

- Ali, onde?

- Ao céu. Tenho que ajudar aquele cabelo.

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Cabelo perseguido por dois planetas, Joan Miró

 

- Mas que cabelo? Do que estás a falar? Não é melhor saíres daí? Eu vou ter contigo para te tirar daí.

- Não. – o grito de João foi lancinante. – Eu tenho que ajudar o pobre cabelo. Não vês aqueles dois planetas? Estão a persegui-lo, coitadinho.

Efectivamente, no céu observava-se um fio de luz, rasto de algum avião, mas o pai não estava a compreender nada do que o filho dizia.

O barulho acordara os vizinhos e alguém tomara a iniciativa de ligar para o serviço de socorro. No fundo da rua, surgiram uma ambulância e um carro de bombeiros.
João continuava a gritar coisas sem nexo e a tentar erguer-se no cimo do telhado. A mãe, desesperada, tomou consciência de que o seu filho não era perfeito. A sua mente estava irremediavelmente desarrumada. Quando os bombeiros o conseguiram fazer descer, os pais tiveram que aceitar que o seu filho precisava de ajuda médica. E, abraçados, choraram a “morte" de um filho que nunca existiu, o filho de sonho.

 

Neste desafio de inspiração artística, participam estes criativos  Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCélia, Cristina Aveiro, Fátima BentoImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas

 

Desafio Arte e Inspiração #8

A sedutora

Charneca em flor, 03.11.21

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Ilustração de Moda, Almada Negreiros

 

Quando a via passar, Bento ficava completamente transtornado. Aquela mulher era magnética. A altivez e a elegância com que ela caminhava conferia-lhe uma certa nobreza. Não se pense que ele a vigiava. Apenas se dava a estranha coincidência de ele sair de casa precisamente à mesma hora a que ela passava à sua porta. Todos os dias. Mantendo uma certa distância, ele acompanhava-lhe os passos sentindo o halo de perfume que ela deixava à sua passagem.

Bento era um homem tímido, muito diferente dos homens da sua geração.

Naquela época, era suposto que o homem fosse o sedutor e que a mulher fosse recatada. Pelo menos, aparentemente. Na verdade, uma mulher inteligente era perfeitamente capaz de ser ela a sedutora mas fazendo com que o homem acreditasse nas suas qualidades irresistíveis de galanteio.

Conceição Felicidade era, sem dúvida, uma mulher inteligente e já percebera que aquele desconhecido se perturbava com a sua presença. Há muito que reparava nele e na maneira como a olhava quando se cruzavam. Na verdade, o seu aspecto e porte também lhe tinham chamado a atenção. Só ainda não descobrira como havia de chegar à fala com aquele homem sem o assustar nem parecer uma oferecida. O equilíbrio era muito ténue. Por mais que se vivessem os loucos anos 20 por essa Europa fora, Portugal continuava a ser um país retrógrado. Algumas atitudes nunca seriam bem vistas numa mulher séria. Ela ansiava que aquele homem lhe dirigisse a palavra porque ela teria todo o prazer em retribuir-lhe essa atenção. No entanto, a situação já se arrastava há semanas e Conceição Felicidade queria confirmar se aquele homem estava mesmo interessado. De repente, fez-se luz na sua mente.
Sem perceber bem de que se tratava, Bento reparou que a sua musa deixara cair algo. O homem estugou o passo. Abandonada no passeio, jazia uma singela luva amarela. Aquela era a oportunidade que Bento precisava. A luva pertencia àquela bela mulher e fora isso que ele vira cair. Bento andou ainda mais depressa de modo a conseguir alcançá-la.

Conceição Felicidade olhou para trás, o mais disfarçadamente que conseguiu, e viu que ele mordera o isco. Percebendo que ele começara a andar mais depressa, ela parou diante de uma montra para lhe facilitar a tarefa.

- Minha Senhora, peço desculpa mas penso que isto lhe pertence.

Fingindo-se sobressaltada, Conceição Felicidade virou-se para o encarar.

- Oh, perdão. Não queria assustá-la. Acho que deixou cair a sua luva.

Conceição Felicidade sorriu-lhe, corando de forma encantadora. Aceitando a luva, deixou que os dedos de ambos se tocassem provocando-lhes um arrepio electrizante.

- Muito obrigada, não me tinha apercebido de que a tinha perdido. – disse ela enquanto o olhava nos olhos de modo fugaz.

Bento, espezinhando a sua timidez e percebendo tinha que aproveitar aquela oportunidade única, arriscou num convite:

- Posso oferecer-lhe alguma coisa para compensar o susto que lhe provoquei? Aqui ao lado há uma casa de chá muito agradável.

Conceição Felicidade já não tinha dúvidas de que estava no bom caminho. Apoiando-se no braço que ele lhe oferecia, ela preparou-se para concluir, com sucesso, a ardilosa tarefa de o cativar.

 

Neste desafio de inspiração artística, participam estes criativos  Ana D.Ana de DeusAna Mestrebii yue, Bruno EverdosaCélia, Cristina Aveiro, Fátima BentoImsilvaJoão-Afonso MachadoJosé da XãLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao LuarSetePartidas