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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

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Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago

Charneca em flor, 17.01.23

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"O Evangelho segundo Jesus Cristo" é a obra mais polémica de José Saramago. A sua primeira edição data de 1991. A publicação causou enorme perturbação no país, não só nos sectores católicos como no governo e em grande parte da sociedade nacional. Aliás, este livro foi vetado pelo Secretário de Estado da Cultura como candidato ao Prémio Europeu da Literatura por não respeitar a moral cristã. Estes acontecimentos precipitaram a saída de José Saramago de Portugal para ir viver para a ilha espanhola de Lanzarote.

Este livro começa um pouco antes do nascimento de Jesus e termina com a sua morte mas o autor  conta a história de forma completamente diferente daquilo que é aceite pela doutrina da Igreja Católica. José Saramago cometeu a ousadia de humanizar a Sagrada Família das mais variadas formas. Para além disso, o deus retratado por José Saramago é cruel, irascível e vingativo. Ao contrário daquilo que dizem as Sagradas Escrituras, este Jesus é um homem frágil, cheio de dúvidas e que, em vez de se sacrificar voluntariamente para salvação dos homens, se sente ludibriado por Deus,

Se não tivesse sido proposto no grupo de Leitura Conjunta de Saramago, talvez nunca tivesse pegado neste livro. A visão que José Saramago tem sobre Deus e sobre a religião é totalmente diferente da minha forma de olhar estes temas. Se fosse interpretar este livro, apenas, à luz da doutrina cristã não teria sido capaz de o ler. No entanto, aqui não se trata de doutrina, mas de literatura. E esta é uma obra magnífica, sem sombra de dúvida. Li este livro com grande prazer porque, mesmo conhecendo as linhas gerais desta história, fiquei fascinada com a forma como José Saramago construíu este evangelho alternativo. 

Ao contrário de "Caim" de que não gostei especialmente e até me chocou nalgumas passagens, "O Evangelho segundo Jesus Cristo" não me chocou de forma nenhuma, nem sequer nas passagens que se referem à concepção de Jesus ou à sua relação com Maria Madalena. Mesmo que Jesus Cristo tivesse sido mais humano e menos divino, eu continuaria a acreditar na Sua presença na minha vida.

Seja como fôr, este livro é um dos melhores que José Saramago escreveu e faz parte dos melhores livros que li em 2022.

"Está visto que as pessoas não andam todas por aí a pedir milagres, cada um de nós, com o tempo, habitua-se às suas pequenas ou medianas mazelas e com elas vai vivendo sem que alguma vez lhe passe pela cabeça importunar os altos poderes, mas os pecados são outra coisa, os pecados atormentam por baixo do que se vê, não são perna coxa nem braço tolhido, não são lepra de fora, mas são lepra de dentro. Por isso tinha tido Deus muita razão quando a Jesus disse que todo o homem tem pelo menos um pecado de que se arrepender, e o mais corrente e normal é que tenha muitíssimos."

A Caverna, José Saramago

Charneca em flor, 07.12.22

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Alguém do clube de leitura, Leituras Conjuntas de Saramago, já tinha mencionado este romance. Na altura não foi escolhido mas acabou por ser um dos livros propostos para o mês de Novembro. "A Caverna" fazia parte da minha biblioteca pessoal sem eu suspeitar da pérola que morava na minha estante. Este livro passou a fazer parte do Top 3 dos meus livros preferidos de José Saramago em conjunto com "as intermitências da morte" e "Ensaio sobre a cegueira". Cada um deles deve o seu lugar no meu coração por motivos completamente diferentes.

A figura central deste romance é Cipriano, um oleiro que, na sua olaria artesanal, produz peças de barro tradicionais. O seu principal cliente é o Centro, um gigantesco edifício comercial e habitacional, que se situa na cidade. Na olaria, Cipriano conta com a ajuda da sua filha, Marta, com a qual tem uma relação muito próxima. Logo no início acompanhamos a viagem de Cipriano desde à aldeia até ao Centro. A viagem serve dois propósitos, entregar uma encomenda das suas louças de barro e transportar o seu genro até ao Centro. Marçal trabalha naquele empreendimento como guarda e ambiciona ser promovido a guarda residente o que lhe daria o privilégio de viver, com a família, nos apartamentos do Centro. No entanto, Cipriano é confrontado com a diminuição do interesse comercial nos seus produtos colocando em risco a sua fonte de rendimento.

Neste romance, José Saramago leva-nos a reflecfir sobre o consumismo desenfreado, os malefícios da industrialização, a projecção de imagens falsas que alteram a percepção da realidade, o envelhecimento e consequente sentimento de inutilidade que muitas pessoas enfrentam quando o seu trabalho é considerado desnecessário. Ao mesmo tempo, o autor construiu personagens brilhantes, não só as personagens centrais (Cipriano, Marta, Marçal) mas também os outros elementos que vão aparecendo para ajudar a consolidar a história. Como o cão, Achado, que aparece na olaria e "decide" ficar com aquela família. O elemento canino repete-se em várias obras, como o inesquecível cão das lágrimas dos "Ensaios" ou o cão que reúne todas as personagens humanas n' "A Jangada de Pedra".

Na verdade, gostei tanto deste livro que nem consigo explicá-lo em palavras. De entre os inúmeros pormenores inesquecíveis, destaco a relação tão carinhosa e especial entre Cipriano e a filha Marta. Mesmo quando há algum conflito entre eles, o amor nunca deixa de estar presente bem como o entendimento mútuo. Nem que para isso seja necessário dar ao outro o espaço de que precisa. A figura do genro, Marçal, longe de ser um factor de discórdia, acaba por complementar, na perfeição, aquela família. No fundo, "A Caverna" mostra-nos que o amor é imensamente mais importante que os objectos que somos levamos a consumir.

Quase que sublinhei todo o livro porque José Saramago escreveu tantas frases e parágrafos maravilhosos que é difícil escolher só algumas. Apetece citar todas as páginas deste romance.

E porque será que se chama "A Caverna"? O título faz todo o sentido mas, para saberem que sentido é esse, têm que o ler.


"Estou a ficar surpreendida com o seu conhecimento destas matérias, Vivi, olhei, li, senti, Que faz aí o ler, Lendo, fica-se a saber quase tudo, Eu também leio, Algo portanto saberás, Agora já não estou tão certa, Terás então de ler doutra maneira, Como, Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar a outra margem, a outra margem e que importa, A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que le seja, ela, a sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar, Bem observado, disse Cipriano Algor, mais uma vez fica demonstrado que não convém aos velhos discutir com as gerações novas, sempre acabam por perder, enfim, há que reconhecer que também aprendem alguma coisa, Muito agradecida pela parte que me toca,"

 

 

 

 

Caim, José Saramago

Charneca em flor, 15.11.22

No dia 16 de Novembro, se fosse vivo, José Saramago faria 100 anos. Nesse dia assinala-se o fim das comemorações do Centenário do único Prémio Nobel da Literatura português. Estas festividades foram o mote para a Leitura Conjunta de Saramago a que eu aderi desde a primeira hora. O Centenário já passou mas vamos continuar a ler os seus livros até ao fim do ano, pelo menos.

Em Outubro, o livro escolhido foi "Caim".

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O posicionamento de José Saramago perante a religião, nomeadamente a Igreja Católica, é conhecido. Na altura do seu lançamento, o livro e o seu autor foram alvos de inúmeras críticas do sector religioso, não só pelo conteúdo do livro, como também pelos comentários que José Saramago foi fazendo durante a divulgação deste romance.

Neste livro José Saramago parte da história de Caim, assassino do seu irmão Abel. O autor começa por redimir Caim ao apontar um autor moral do crime hediondo e continua analisando alguns dos acontecimentos mais violentos e sangrentos da Bíblia.

Uma das críticas que foram feitas a este livro foi a leitura literal da Bíblia utilizada por José Saramago no desenvolvimento da sua história. Confesso que isso também foi algo que me incomodou pela minha vivência religiosa e pela minha antiga ligação a grupos bíblicos. Não é a mesma coisa olhar para o Antigo Testamento com o intelecto ou com a fé. No entanto,  e tendo em conta que "Caim" é um romance de ficção, a criatividade do autor partiu da Bíblia mas ele era livre para seguir o caminho que bem entendesse.

Por outro lado, há algo de muito importante que retirei desta leitura e nem sei se era essa a intenção do autor. Refiro-me ao facto da maldade dos homens se justificar como sendo vontade de Deus. Ao longo da História, há inúmeros exemplos de atitudes humanas fundamentadas, erradamente do meu ponto de vista, na hipotética vontade de Deus. Quantos dos acontecimentos retratados no Antigo Testamento, sejam verídicos ou não, terão sido responsabilidade humana e não divina?

No encontro virtual para discussão do livro, uma das participantes perguntou se tínhamos gostado do livro. E eu não fui capaz de responder. Já terminei a leitura há 3 semanas e continuo sem ter uma opinião concreta. Não detestei mas também não adorei. "Caim" tem o dom de nos provocar questões nas quais não pensamos com frequência. A fina ironia tão característica de José Saramago está presente e ainda me fez rir algumas vezes. No entanto, não gostei da misturada de eventos bíblicos que o autor construiu neste pequeno livro. Parece que "abanou" a Bíblia e as histórias ficaram todas misturadas. Não sei como é que alguém que não conheça nada sobre a Bíblia compreenderá este livro.

"A eva e adão ainda restava a possibilidade de gerarem um filho para compensar a perda do assassinado, mas bem triste há-de ser a gente sem outra finalidade na vida que a de fazer filhos sem saber porquê nem para quê. Para continuar a espécie, dizem aqueles que crêem num objectivo final, numa razão última, embora não tenham nenhuma ideia sobre quais sejam e que nunca se perguntaram em nome de quê terá a espécie de continuar como se fosse ela a única e derradeira esperança do universo. Ao matar abel por não poder matar o senhor, caim deu já a sua resposta. Não se augure nada bom da vida futura deste homem."

 

levantado do chão, José Saramago

Charneca em flor, 25.10.22

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Em Setembro li mais um livro de José Saramago para a Leitura Conjunta de Saramago. O livro escolhido pelo grupo foi "levantado do chão". Esta obra foi publicada em 1980 e é considerada uma das obras fundamentais do autor. Durante a escrita do livro, José Saramago viveu algum tempo em Lavre no concelho de Montemor-o-Novo. As conversas com os habitantes da vila bem como as histórias que lhe contaram foram, de certeza, fonte de inspiração.

A acção de "levantado do chão" decorre desde o final do séc. XIX até aos primeiros dias após a Revolução dos Cravos. Os grandes protagonistas são os trabalhadores do campo, com especial relevo para as três gerações da família Mau-Tempo. Saramago construíu uma história em torno da vida numa estrutura latifundiária, sistema de propriedade muito comum  no Alentejo. José Saramago retrata de forma brilhante a miséria, o sofrimento, as humilhações e a repressão a que os camponeses estavam sujeitos nesse sistema, não só perante o poder económico dos grandes proprietários mas também perante a Igreja e as autoridades policiais. Neste livro percebemos também os movimentos de revolta e de luta por melhores condições de trabalho e de vida que, de forma mais ou menos organizada, foram surgindo mesmo durante o tempo da ditadura. A Reforma Agrária que ocorreu após o 25 de Abril de 1974 tem as suas raízes, precisamente, nesses movimentos pelo direito ao trabalho condigno e ao justo pagamento.

No início, não foi muito fácil para mim entrar no livro porque José Saramago utiliza muitas personagens dificultando o acompanhamento do curso da narrativa. A partir de metade do livro, sensivelmente, já li com muito mais velocidade e interesse. Acredito que foi com "levantado do chão" que o autor descobriu a sua maneira de escrever tão característica.

Esta leitura foi muito significativa para mim porque as minhas origens são alentejanas e a minha mãe cresceu num latifúndio, não muito longe de Lavre. Embora a família da minha mãe não tenha passado por este tipo de problemas - o meu avô tinha trabalho fixo e não trabalhava à jorna como os camponeses do livro - revi, nesta obra, as histórias que ouvi desde pequena sobre a vida no campo. Aliás, sempre gostei de saber como era a vida nesse tempo.

Eis o que José Saramago disse sobre o livro:

"O livro chama-se Levantado do Chão porque, no fundo, levantam-se os homens do chão, levantam-se as searas, é no chão que semeamos, é no chão que nascem as árvores e até do chão se pode levantar um livro."

Para mim, a experiência acabou por ser muito positiva mas reconheço que não será um livro adequado a todos aqueles que gostam de ler.

"O mundo, com todo este seu peso, esta bola sem começo nem fim, coberta de mares e de terras, toda esfaqueada de rios, ribeiras e regatos, a escorrer a aguazinha clara que vai e volta e é sempre a mesma, suspense nas nuvens ou escondido nas nascentes por baixo das grandes lajes subterrâneas, o mundo que parece uma brutidão aos tombos no céu, ou silencioso pião como um dia o hão-de ver os astronautas e já podemos ir antecipando, o mundo é, visto de Monte Lavre, uma coisa delicada, um relogiozito que só pode aguentar um tanto de corda e nem uma volta mais, e se põe a tremer, a palpitar, "

Claraboia, José Saramago

Charneca em flor, 07.09.22

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"Claraboia", livro do mês de Agosto da Leitura Conjunta de Saramago

 

"Claraboia" foi o segundo livro que José Saramago escreveu já que o terminou em 1953, seis anos após "Terra do Pecado". No entanto, o livro só foi publicado em 2011 já depois de o autor ter falecido. O original foi enviado, por um amigo, a uma editora a qual nunca respondeu. Mais tarde quando o autor já era conhecido, a mesma editora contactou José Saramago para mas ele optou por não publicar o livro deixando essa decisão a cargo da sua família quando já não estivesse entre nós.

Clarabóia é uma abertura que pode existir, por exemplo, no alto dos edifícios com o objectivo de fornecer luz aos espaços.  Nos prédios mais antigos era muito comum utilizar-se uma clarabóia para iluminar a escada. Eu fui criada num prédio com uma clarabóia.

Este romance passa-se, efectivamente, num prédio e, ao lê-lo, é como se estivéssemos debruçados a espreitar pela clarabóia observando a vida dos vários personagens que habitam o edifício. Em cada patamar, vivem famílias diferentes, pobres, com vivências próprias dos habitantes de uma cidade nos anos 50. As histórias de cada personagem vão-se interligando e tocando nalguns pontos. As figuras mais marcantes desta história são o sapateiro Silvestre que mora no rês-do-chão e o seu hóspede, o misterioso Abel. 

Embora este livro esteja escrito de uma forma muito diferente do estilo pelo qual José Saramago se tornou conhecido mais tarde, em "Claraboia" nota-se já a crítica social tão característica do escritor. Nos livros mais recentes Saramago teve o cuidado de embrulhar a sua análise social na história, e embora também aqui se possa encontrar a sua acutilância de observação do quotidiano entrelaçada nas vidas das personagens, a verdadeira análise é-nos servida através das conversas entre Silvestre e Abel.

Apesar de José Saramago ter já 30 anos quando escreveu o livro achei que ""Claraboia" revela um homem muito idealista para além de um escritor que ainda não tinha encontrado a sua voz. Mesmo antes de escrever este texto encontrei este comentário de José Saramago no site da Fundação que leva o seu nome:Acho que o livro não está mal construído. Enfim, é um livro também ingénuo, mas que, tanto quanto me recordo, tem coisas que já têm que ver com o meu modo de ser.» Eu não podia concordar mais, "Claraboia" ainda não é um livro do escritor nobilizado mas ali já estava um embrião do escritor que José Saramago viria a ser.

Dito isto, tenho que dizer que gostei muito de ler este livro e que foi surpreendente ver que José Saramago também sabia usar travessões nos diálogos .  As personagens são todas muito interessantes, cada uma com a sua particularidade e circunstância, mas adorei o sapateiro Silvestre bem como a D. Lídia, a quem um senhor rico pôs casa ali mesmo no prédio entre gente séria, ou não mas para descobrirem isso têm que ler.

"- Não , não fujo. Aprendi a ver mais longe que a sola destes sapatos, aprendi que, por detrás desta vida desgraçada que os homens levam, há um grande ideal, uma grande esperança. Aprendi que a vida de cada um de nos deve ser orientada por essa esperança e por esse ideal. E que se há gente que não sente assim, é  porque morreu antes de nascer. - Sorriu e acrescentou:
- Esta frase não é minha. Ouvi-a há muitos anos..."

O Homem Duplicado, José Saramago

Charneca em flor, 26.07.22

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"O Homem Duplicado" foi o 6o livro de José Saramago escolhido para a Leitura Conjunta de Saramago. Sendo que o objectivo inicial era a leitura de 12 livros em 2022, ano do centenário do escritor, vamos a meio da iniciativa.

Parti para este livro sem nenhuma expectativa uma vez que não fazia ideia do que tratava do livro. Ou melhor, pelo nome percebia-se que alguém descobre um duplo mas, para além do título, não sabia mais nada. 

A personagem central desta obra é o pacato professor de História, Tertuliano Máximo Afonso. Após um colega lhe surgir um filme, descobre um actor que é, em tudo, igual a si próprio. Esta descoberta perturba-o de tal forma que a busca pela identidade deste "duplo" passa a dominar, quase por completo, a sua existência.

Espero não estar a ofender a memória de José Saramago ao dizer que, na minha opinião, este livro se poderá considerar um thriller psicológico pela maneira como ele estruturou a história. José Saramago conta uma história muito interessante mas o que torna o livro mais cativante é a maneira como o autor analisa a natureza humana. Saramago tinha um talento enorme para olhar para as pessoas e perceber aquilo que são capazes de fazer quando são colocadas perante uma situação limite e destabilizadora. 

Embora eu tenha tido alguma dificuldade em progredir na leitura penso que isso não se deveu ao livro mas ao meu próprio estado anímico. Nem sempre encontramos o livro certo na altura adequada.

"O Homem Duplicado" tem, para além de tudo, 2 pormenores que tornam o livro ainda mais especial. Um dos pormenores a que me refiro é o facto de o autor ir lançando pequenas pistas, muito dissimuladas, ao longo do livro e que fazem sentido no final do livro. O outro pormenor foi uma referência a um dos meus livros preferidos de Saramago. Ao que parece há referências a outras obras mas que eu ainda não li. De onde se concluí que, quando conseguir ler todos os livros que Saramago escreveu, tenho que voltar a ler tudo outra vez para encontrar todas as referências .

"Acaba de lhe ocorrer agora mesmo, e for como se uma bênção retardada tivesse fi-
nalmente descido do chuveiro, como se um outro banho lustral, não o das três mulheres nuas na varanda, mas o deste homem só e fechado na precária segurança da sua casa, compassivamente, no mesmo escorrer da agua e da espuma, o libertasse das sujidades do corpo e dos temores da alma."

"Levará consigo um espelho de tamanho suficiente para que, retirada enfim a barba, as duas caras, ao lado uma da outra, possam comparar-se directamente, em que os olhos possam passar da cara a que pertenciam à cara a que poderiam ter pertencido, um espelho que declare a sentença definitiva. Se o que está à vista é igual, também o resto deverá ser, não creio que seja necessário porem-se em pelota para continuar com as comparações"

A Jangada de Pedra, José Saramago

Charneca em flor, 12.07.22

Já há muito que não dou notícias sobre a minha participação no clube de leitura dedicado aos livros de José Saramago dinamizado pela jovem jornalista Magda Cruz, autora do podcast Ponto Final, Parágrafo. Esta ausência deveu-se ao facto de eu ter já lido, recentemente, os livros escolhidos para os meses de Março e Abril que foram "ensaio sobre a cegueira" e "ensaio sobre a lucidez", respectivamente. Como tal resolvi não os reler porque ainda tinha as obras muito presentes.

No mês de Maio*, o livro proposto foi "A Jangada de Pedra". Curiosamente eu achava que também já o tinha lido mas não me lembrava de nada. Eu sei que alguém mo emprestou mas, ou não o li ou não o terminei. O que é certo é que senti que tudo era novidade para mim.

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Imagem retirada daqui

Para dizer a verdade, não foi uma leitura fácil, antes pelo contrário. Terminei esta obra com muito esforço. 

A premissa do livro é muito interessante. Por um estranho fenómeno que ninguém consegue explicar, abre-se uma fenda nos Pirenéus, a Península Ibérica separa-se do resto da Europa e começa uma viagem à deriva. Nesses dias há 5 pessoas, e 1 cão, às quais sucedem alguns acontecimentos que parecem ter relação, de alguma forma, com aquilo que se passa nos Pirinéus. Esses personagens vão encontrar-se e o leitor acompanha as relações que se estabelecem entre eles bem como a viagem que empreendem pela Península Ibérica enquanto esta continua à deriva.

Este livro foi publicado em 1986 e parece ser uma "resposta" de José Saramago à adesão, no ano anterior, de Portugal e Espanha à União Europeia, na época designada por Comunidade Económica Europeia, CEE. Presumo que o livro tenha começado a ser escrito antes da assinatura do Tratado de Adesão e, conhecendo o posicionamento político de José Saramago, imagino que o autor não fosse, de modo nenhum, favorável a esta adesão. Terá sido por isso que imaginou esta "fuga" da Península Ibérica?!

Em todos os livros de Saramago que tenho lido se nota alguma mensagem política mas senti que "A Jangada de Pedra" tem bastantes partes puramente políticas e penso que terá sido isso que tornou a leitura mais difícil do que é habitual. No entanto, sobressai, mais uma vez, o génio literário de Saramago uma vez que, tudo o que acontece às personagens (incluindo a Península Ibérica que também se torna personagem) durante o relato é extremamente imaginativo e tão bem argumentado que nos leva a acreditar que seria possível que Portugal e Espanha se transformassem numa gigantesca jangada de pedra navegando pelo Oceano Atlântico.

O que se volta a encontrar é o carácter algo premonitório da escrita de José Saramago. A dada altura da história, os jovens europeus fazem manifestações de apoio ao povo ibérico gritando "somos todos ibéricos", tal e qual o "somos todos Charlie" que surgiu nas redes sociais aquando do atentado à sede do jornal satírico "Charlie Hebdo" em 2015. E o que dizer desta passagem que faz lembrar as cidades vazias no início da pandemia: 


"Mas quando nesta cidade, por avenidas, ruas e praças, por bairros e jardins, não se avistar já uma só pessoa, quando às janelas não se vir assomar um vulto, quando os canários que ainda não morreram de fome e sede cantarem no silêncio absoluto da casa ou na varanda para os quintais desertos, quando as águas das fontes e fontanários brilharem ao sol e mão nenhuma vier molhar-se nelas, quando os olhos das estátuas, mortos, girarem em redor a procura de olhos que os vejam, quando os portões abertos dos cemitérios mostrarem que não há diferença entre uma ausência e outra ausência, quando, enfim, a cidade estiver a beira de um agónico minuto esperando que uma ilha do mar a venha destruir, então é que acontecerá a história maravilhosa e miraculosa salvação do navegador solitário."

 

*comecei a lê-lo no fim de Maio mas só o terminei na primeira semana de Junho.

A Viagem do Elefante, José Saramago

Charneca em flor, 22.02.22

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"A Viagem do Elefante" e o Monte Branco (Alpes)

O grupo de Leitura Conjunta de Saramago escolheu, para o mês de Fevereiro, "A Viagem do Elefante". Li esta edição mais antiga que pertenceu ao meu sogro, já falecido, o que tornou a leitura ainda mais especial.

Numa das primeiras páginas do livro, o autor explica que resolveu escrever este livro depois de numa viagem à Áustria, a Salzburgo, se ter deparado com algumas imagens de madeira entre as quais figurava a "nossa" Torre de Belém. A pessoa que o acompanhava contou-lhe que o Rei português D. João III oferecera, como presente de casamento, um  elefante indiano ao Arquiduque da Áustria, Maximiliano II. O pobre animal viajara desde Lisboa até Viena atravessando grande parte de Europa incluindo os Alpes. Partinda deste facto histórico, do qual não existem muitos registos, Saramago aplicou toda a sua mestria e imaginação para construir mais uma história fascinante em que os protagonistas são o elefante Salomão e o seu cornaca mas também a organização social portuguesa e europeia da época.

José Saramago escreveu este livro com a saúde num estado muito debilitado. O autor chegou a temer falecer antes de o terminar. 

Não sei dizer aquilo que mais me fascinou, se a imaginação que Saramago aplicou na "reconstrução" da viagem do elefante ou a sua acutilância na análise das contradições da sociedade da época mas que continuam presentes.  Saramago utilizou o exemplo desta atribulada viagem para mostrar como os ditames de quem nos governa, ou comanda, nos podem conduzir a caminhos íngremes e difíceis de percorrer como aconteceu com o elefante.

Achei admirável que um homem de quase 90 anos ainda mantivesse as suas capacidades intelectuais intactas a ponto de ser capaz de escrever um romance que tem tanto de divertido como de denunciador dos males da sociedade. E ainda ser capaz de piscar o olho aos seus leitores mais assíduos ao colocar uma referência a um dos seus livros mais icónicos.

"A Viagem do Elefante" proporcionou-me bons momentos e levou-me a viajar por essa Europa fora, sentada no dorso do elefante. É impossível não ficar apaixonada pelo Salomão, pelo seu cornaca e pela relação tão estreita que havia entre eles.

"Não se pode descrever. Realmente, o maior desrespeito à realidade, seja ela, a realidade, o que for que se poderá cometer quando nos dedicamos ao inútil trabalho de descrever uma paisagem, é ter de fazê-lo com palavras que não são nossas, que nunca foram nossas, repare-se, palavras que já correram milhões de páginas  e de bocas antes que chegasse a nossa vez de as utilizar,  palavras cansadas, exaustas de tanto passaram de mão em mão e deixarem em cada uma parte da sua substância vital."

 

"as intermitências da morte", José Saramago

Charneca em flor, 31.01.22

IMG_20220129_154226.jpgUm dos livros que me acompanhou neste mês de Janeiro foi "as intermitências da morte" de José Saramago. Tratou-se de uma releitura por causa da minha participação num "clube de leitura " dedicado aos livros de José Saramago uma vez que, este ano, se comemora o centenário do nascimento do Prémio Nobel da Literatura português.

Um facto interessante de reler um livro, quase 12 anos depois do primeiro contacto  com esta história, é reparar em pormenores que me escaparam nessa altura. Como é óbvio, já não sou a pessoa que era em 2010 uma vez que amadureci como pessoa e como leitora. José Saramago construíu uma história muito interessante e divertida apesar da morbidez do tema. Como é expectável, o autor, através desta história, passa importantes mensagens políticas e sociais bem como a crítica à Igreja como era seu apanágio. Será que gostaríamos de viver nesta realidade em que não se morria mas que se continuava a envelhecer e a adoecer? Seria agradável ficar num limbo entre a vida e a morte? Que implicações sociais e económicas teria esta situação? Mais um livro que me fez pensar apesar de também me proporcionar momentos agradáveis.

Para quem nunca leu Saramago, este é um bom livro para começar.

"É a todos os respeitos deplorável que, ao redigir a declaração que acabei de escutar, o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado daquilo que constitui o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave de abóbada da nossa santa religião, Eminência, perdoe-me, temo  não compreender aonde quer chegar, Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja."