Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

"Os Anos", Annie Ernaux

Charneca em flor, 16.05.23

IMG_20230312_175041.jpg

Nos últimos meses, alguns problemas de saúde têm-me mantido afastada da internet. O último post que publiquei aqui já tem 2 meses e já não partilho as minhas leituras desde Fevereiro. Foi mais ou menos por essa altura que li o livro "Os Anos" da autora francesa Annie Ernaux, a qual foi distinguida com o Prémio Nobel da Literatura no ano passado.

"Os Anos" foi a proposta de leitura em Fevereiro  do Clube de Leitura Ponto Final, Parágrafo. 

Esta obra introduziu-me à escrita de Annie Ernaux. "Os Anos" é considerado um romance autobiográfico apesar de ser escrito na 3a pessoa do singular. As memórias da autora vão sendo despertadas por inúmeras fotografias descritas ao longo do livro. No entanto, o relato parte do pessoal para o colectivo abordando, não só o que aconteceu na sua vida, mas também no seu país, e no mundo, no período entre 1941 e 2006.

O facto de um autor ser distinguido com o mais importante prémio literário do mundo não é garantia de que o leitor fique maravilhado desde o primeiro momento. A minha experiência com Annie Ernaux não foi a melhor de todas. As razões para esta sensação podem ser inúmeras. Às vezes, aquele não é o momento para nos cruzamos com determinado livro.

Avancei na leitura de forma muito lenta o que pode ter sido causado pelo início dos meus problemas de saúde a nível ocular mas também por ter intercalado "Os Anos" com outro livro que despertava mais o meu interesse.

As primeiras páginas foram muito enfadonhas para mim e provocaram-me uma sensação de repetição porque tinha acabado de ler um romance que se passava na mesma época. Só comecei a achar mais interessante quando o relato se foi aproximando do ano em que nasci. Ou seja, desde o fim dos anos 60 até aos primeiros anos do séc. XXI.

Um dos pormenores que achei curioso foi a descrição das fotografias que vão pontuando o texto como se fossem os cliques que despoletavam as recordações. Também gosto das refeições festivas com familiares ou amigos e das conversas que tinham à volta da mesa. O que não funcionou para mim foi a forma como o livro está estruturado, com aparente falta de ligação entre as frases e os parágrafos e sem capítulos organizados. Não é o meu estilo de livro mas vou dar uma nova oportunidade à autora uma vez que já tenho outro na prateleira dos livros para ler ou na TBR como dizem os jovens .

 
"Essa forma suscetível de conter toda a sua vida, que ela pensou poder inferir a partir de uma sensação, e a cujo processo teve de renunciar, teria origem na sensação que experimenta, quando está de olhos fechados na praia ao sol ou num quarto de hotel, de se desmultiplicar, desdobrando-se e existindo corporalmente em vários lugares da sua vida, acedendo assim a um tempo palimpsesto. Até agora, em termos de escrita, essa sensação não a levou a lugar nenhum nem a qualquer tipo de conhecimento. Só estimula o desejo de escrever — e de mais nada, como nos minutos que sucedem ao orgasmo."

 

 

"Toda a luz que não podemos ver", Anthony Doerr

Charneca em flor, 14.05.23

IMG_20230306_070552_741.jpg

Este livro foi uma das escolhas de Janeiro no Clube do Livra-te. Eu nunca tinha ouvido falar dele nem do seu autor mas, na altura do lançamento, foi considerado um dos melhores livros do ano. Em 2015, "Toda a luz que não podemos ver" foi distinguido com o Prémio Pulitzer. 

A história situa-se, maioritariamente, na altura da II Guerra Mundial e gira em torno de duas personagens. Marie-Laure é uma jovem cega que vive com o pai, responsável por todas as chaves do Museu Nacional de História Natural, em Paris, e é nesse ambiente que cresce. Quando os alemães se aproximam de Paris, Marie-Laure e o pai fogem da cidade e acabam por ir até Saint-Maló, uma cidade costeira da Bretanha. Werner Pfenning é um órfão alemão com um enorme interesse por rádios o que se traduz num grande talento para pôr esses aparelhos a funcionar. Essa sua inclinação acaba por conduzi-lo a uma escola militar e, consequentemente, à guerra.

Esta obra está organizada em capítulos curtos que vão alternando a história de Marie-Laure com a história de Werner levando o leitor a olhar para os dois lados do conflito.  Inicialmente, achei que os capítulos curtos iriam facilitar a leitura mas tal não aconteceu. Embora a história seja muito interessante, a escrita não é muito cativante uma vez que algumas passagens se tornam muito repetitivas. A leitura foi mais difícil do que eu estava à espera.

Aquilo que extraí de mais positivo desta história foi o facto de ser possível olhar para a guerra pela perspectiva dos soldados alemães. A grande maioria das obras sobre esta época partem do ponto de vista dos Aliados, dos países ocupados ou da Resistência. Acho importante que se perceba que os soldados alemães podem ter ido para a guerra, não por grande convicção, mas sim porque foram obrigados pelas circunstâncias da sua vida tal como acontece, nos dias de hoje, em todos os conflitos que existem. O jovem soldado alemão, Werner, foi capaz de conquistar a minha empatia.

"Toda a luz que não podemos ver" encantou-me por um outro motivo. Grande parte da acção decorre na cidade de Saint-Maló onde já tive oportunidade de passar algumas horas. Nunca imaginaria que os habitantes da cidade bonita e soalheira que encontrei tinham passado por uma dura ocupação alemã e que a cidade, cuja muralha data do séc. XII, tinha sido destruida, quase por completo, quando os amerocanos chegaram para libertar a cidade do jugo germânico. A reconstrução de Saint-Maló levou 30 anos.

Não sendo um livro perfeito, tem alguns pontos muito positivos.


"Certa noite, Werner e Jutta sintonizam uma transmissão com algumas interferências na qual um homem novo, num francês melífluo com sotaque, fala sobre luz.
Como é sabido, meninos, o cérebro está trancado na mais absoluta escuridão, diz a voz. Flutua num líquido de cor clara dentro do crânio, nunca à luz. E, no entanto, o mundo que constrói na mente está repleto de luz. É povoado por cor e movimento. Portanto, meninos, como é que o cérebro, que vive sem uma centelha de luz, nos constrói um mundo pleno dela?"

"- Sabes qual é a maior lição da História? É que a História é aquilo que os vencedores disserem que ela é. Eis a lição. Quem ganha é quem decide a História. Agimos em nome do nosso interesse pessoal. Essa é que é a verdade. Indica-me uma nação ou uma pessoa que não o faça. O truque consiste em descortinar onde estão os nossos interesses."

 

P.S - Só agora reparei que tinha este post em rascunho, desde Fevereiro, mas tinha-me esquecido de o publicar.

"City of Girls", Elizabeth Gilbert

Charneca em flor, 21.02.23

IMG_20230218_084717.jpg

 

"City of Girls" foi um dos livros escolhidos para o mês de Janeiro no Clube do Livra-te. Por coincidência, foi o primeiro livro lido no meu Kobo, recentemente adquirido. Desta feita, optei por ler em inglês.

Elizabeth Gilbert tornou-se conhecida pelo livro de memórias,  "Eat, Pray, Love"* que deu origem ao filme com o mesmo nome protagonizado por Julia Roberts. Eu nunca tinha lido nada desta autora nem fazia ideia de que era romancista.

A narrativa de "City of Girls" está organizada em forma de uma longa carta que a protagonista, Vivien, escreve como resposta a Angela. Esta personagem, cuja identidade se mantém misteriosa durante quase todo o livro, pretende saber qual relação entre o seu próprio pai e Vivien. Assim Vivien, já idosa, mergulha nas suas memórias e conta-lhe toda a sua vida.

O relato começa no Verão de 1940 quando Vivien tinha 19 anos. Devido ao seu insucesso escolar, e sem saberem como lidar com o seu temperamento rebelde, os pais resolvem enviar a jovem para Nova Iorque. Ali vai viver com a sua tia Peg, proprietária de um edifício que incluí o teatro Lily Playhoyse, do qual é a directora. Vivien chega à cidade com uma mala e uma máquina de costura. O seu talento para costurar torna Vivien na responsável pelos figurinos das humildes peças de teatro levadas à cena pela tia Peg. Ao mesmo tempo, a jovem começa a tomar contacto com inúmeras personagens excêntricas e com um ambiente boémio muito diferente daquele a que estava habituada. Em Nova Iorque desenvolve a sua natureza feminina e independente. Vivien faz amizades, diverte-se, apaixona-se e vive momentos felizes até que tudo muda por uma má decisão.

A história de Vivien decorre durante 70 anos desde os anos 40 do séc. XX até à primeira década do séc. XXI. Não se limita a ser uma história de vida mas é também uma história de todas as mudanças sociais ocorridas durante esses anos. A vida de Vivien é influenciada pelas convenções sociais, mesmo que ela não lhes obedeça, pelo fantasma da Segunda Guerra Mundial, na qual os Estados Unidos da América tiveram um papel preponderante, pelo ambiente pós-guerra que transformou Nova Iorque numa cidade diferente e também pelas mudanças sociais ocorridas nos anos 60. No entanto, Vivien e as pessoas que lhe eram mais próximas sempre pautaram a sua vida por valores muito avançados para a época. A cidade de Nova Iorque descrita por Elizabeth Gilbert é uma verdadeira cidade de mulheres pouco convencionais, independentes e emancipadas.

Tal como Vivien vai amadurecendo ao longo do livro, a escrita de Elizabeth Gilbert também evolui. A história é dividida em 2 grandes blocos e, na minha opinião, a forma de escrever também é muito diferente nesses 2 blocos. Uma das características que mais me cativou foi o humor que se vai encontrando ao longo do texto. Esta leitura foi muito agradável e divertida, gostei mesmo muito.

 

"New York City in 1940

There will never be another New York like that one. I'm not defaming all the New Yorks that came before 1940, or all the New Yorks that came after 1940. They all have their importance. But this is a city that gets born anew in the fresh eyes of every young person who arrives here for the first time. So that city, that place - newley created for my eyes only - will never exist again. It is preserved forever in my memory like an orchid trapped in a paperweight. That city will always be my perfect New York.

You can have your perfect New York, and other people can have theirs - but that one will always be mine."

 

*Comer, Orar, Amar

Lendários, Tracy Deonn

Charneca em flor, 14.02.23

IMG_20230213_094738.jpg

Desde que resolvi aderir a clubes de leitura, tenho lido uns quantos livros fora da minha zona de conforto. Este "Lendários" é um bom exemplo disso uma vez que se trata de um livro de fantasia. Aliás já não lia livros deste género desde o fim da adolescência quando li a série "As Brumas de Avalon"

A leitura deste livro teve alguns percalços. Primeiro que tudo, não lhe consegui pegar em Dezembro* devido a este livro. Em seguida, quando estava completamente embrenhada na história, descobri um defeito no meu exemplar e tive que o devolver e esperar por um novo. Percalços à parte, foi uma leitura mesmo fantástica como é natural tendo em conta o estilo .

"Lendários" conta a lenda do Rei Artur mas de uma forma actualizada. A figura central é Bree, uma jovem que vai estudar para uma Universidade da Carolina do Norte ao mesmo tempo que tenta lidar com o luto pela morte repentina da mãe. Na sua primeira saída à noite, assiste a um ataque demoníaco acabando por se cruzar com os Lendários, uma sociedade secreta que reúne estudantes universitários que se afirmam descendentes dos Cavaleiros da Távola Redonda. Através do contacto com os Lendários, Bree confronta-se com os seus próprios poderes que desconhecia e que vai ter que aprender a controlar.

A autora conseguiu desenvolver uma história muito interessante e tão envolvente que não se consegue deixar de ler até à última página. Só que depois encontramos um final aberto que estende uma ponte para o segundo livro da saga.

A escrita é mesmo cativante e Tracy Deonn conseguiu abordar temas muito diferentes, e inesperados, de forma magistral. Nunca imaginei que fosse possível entrelaçar a cultura afro-americana sulista com a lenda do Rei Artur. Esta junção de temas permitiu incluir o racismo como um dos temas mais importantes deste "Lendários". Também nunca imaginaria encontrar aqui uma excelente reflexão sobre o luto e sobre como a perda de alguém transforma a vida de quem fica. A autora até conseguiu incluir uma personagem não binária de forma muito natural. Nem todos os autores o conseguem.

Tal como alguns dos livros que li no ano passado, eu não faço parte do público-alvo deste livro mas adorei esta leitura. Fiquei muito envolvida com estas personagens e com esta história. "Lendários" lê-se com muita facilidade apesar das suas mais de 500 páginas. Foi muito bom viajar no tempo e relembrar-me da jovem que se embrenhou n' "As Brumas de Avalon".

 

"Ser capaz de seguir o rasto da própria família até tão longe é algo que nunca imaginei. A minha familia apenas conhece a geração que se seguiu a Emancipação. De repente, é difícil estar aqui e absorver a magnificência da Muralha e não sentir uma inegável sensação de ignorância e inadequação. Depois, uma onda de frustração, porque provavelmente houve alguém que quis gravar tudo, mas quem poderia ter escrito a história da minha família até aqui? Quem teria sido capacitado, ensinado, autorizado a fazê-lo? Onde está a nossa Muralha? Uma Muralha que não me faça sentir perdida, mas sim encontrada. Um Muralha que se sobreponha a qualquer pessoa que lhe ponha os olhos em cima.

Em vez de admirada, sinto-me... injustiça."

 

P.S. - Emancipação refere-se à Proclamação da Emancipação assinada em 1862 pelo presidente dos EUA, Abraham Lincoln, dando início ao processo de abolição da escravatura nos estados confederados norte-americanos.

*"Lendários" foi uma das escolhas de Dezembro no Clube do Livra-te.

"Uma Pequena Vida", Hanya Yanagihara

Charneca em flor, 01.02.23

IMG_20230131_233601.jpg

Ler "Uma Pequena Vida" é, antes de mais, um grande desafio. Afinal, são quase 700 páginas cuja leitura ocupou cerca de 19 horas, distribuídas ao longo de 20 dias. Durante esse tempo, senti-me completamente dominada por este leitura e refém da história criada por Hanya Yanagihara.

O ponto de partida é amizade que se desenvolve entre quatro jovens que se conhecem na Universidade, Willem, JB, Malcolm e Jude. Os laços que se forjam entre eles são tão fortes que se mantêm, com altos e baixos, por toda a vida. Em "Uma Pequena Vida" acompanha-se a entrada na vida adulta bem como as décadas seguintes. Enquanto os jovens procuram a auto-realização vão percebendo que a saúde física e psicológica do mais brilhante de todos, Jude, se vai deteriorando ao longo do tempo. Jude foi sempre o mais enigmático e misterioso. Em tantos anos de amizade, nenhum deles soube nada sobre a vida passada do amigo. E é no passado que se encontram todas as respostas.

Hanya Yanagihara criou uma história que tem tanto de fenomenal como de doloroso. As personagens estão muito bem desenvolvidas e é impossível não nos apaixonarmos por elas. Tal como pessoas reais, têm qualidades e defeitos e nem sempre têm as melhores atitudes, como acontece na vida. 

"Uma Pequena Vida" tem passagens muito bonitas que nos fazem acreditar no valor da amizade e do amor mas, ao mesmo, são descritas situações tão cruas e duras que conseguem provocar sensações físicas nos leitores. Em certos momentos, senti-me verdadeiramente nauseada e tive que parar a leitura porque não aguentava nem mais uma linha.

Admito que caí na "armadilha" da autora. Hanya Yanagihara manipula o leitor com tal mestria que, por mais "bofetadas" que as suas palavras me dessem, eu não conseguia parar de ler na esperança de que esta vida não fosse assim tão dramática.

Este livro faz-nos calçar os sapatos do outro, daquele que vive em constante sofrimento, daquele que tem atitudes incompreensíveis mas que não podemos julgar porque não conhecemos que caminho teve que percorrer até chegar ao momento em que se cruza connosco.

Não posso, em consciência, aconselhar esta leitura mesmo que "Uma Pequena Vida" tenha conquistado um lugar de destaque nos livros da minha vida. Este não é um livro para qualquer pessoa. Só alguém com uma grande capacidade de tolerância à dor será capaz de levar esta tarefa até ao fim. Não é uma leitura fácil mas eu sinto-me orgulhosa por ter conseguido ultrapassar a este desafio.

 

"Sentiu o aguilhão da culpa depois de falar com um e outro, mas a decisão estava tomada. Seria melhor assim, tinha a certeza: não trazia nada de bom às vidas deles. Era uma coleção de problemas bizarros, não mais do que isso, e, a menos que de alguma maneira se fizesse parar, consumi-los-ia com as suas necessidades. Exigiria
sempre mais, devorando-os a6te lhes deixar apenas os ossos. Encontrariam maneira de resolver cada dificuldade que eles lhe apresentassem e ele sempre encontraria novas maneiras de os destruir. Estariam de luto durante algum tempo, claro, porque eram pessoas boas - as melhores do mundo - ele lamentava que assim tivesse de acontecer, mas acabariam por perceber que tinham ficado melhor depois de ele partir. Dar-se-iam conta de todo tempo que Ihes fora roubado e concluiriam que ele fora um ladrão que lhes sugara a energia e a atenção até à ultima gota. Tinha esperança de que perdoariam, de que acabariam por ver que esta era a sua maneira de lhes pedir perdão. Estava a libertá-los. Eram as pessoas que ele mais amava no mundo e é isso que se faz quando se ama alguém: da-se-lhe a liberdade."

 

Deve ser, Deve - Guilherme Fonseca

Charneca em flor, 25.01.23

IMG_20230124_223358.jpg

 

Nos últimos dias de 2022, introduzi este livro no meio da leitura de um outro livro mais denso e mais longo. A leitura terminou já em Janeiro.

"Deve ser, Deve" é um livro de humor à volta de vários tipos de negocionismo. Embora o negacionismo e as teorias de conspiração sempre tenham existido, a pandemia tornou estas pessoas muito mais visíveis. 

O humorista Guilherme Fonseca fez o sacrifício de se debruçar sobre estes assuntos para nos dar a conhecer este mundo complexo. Às vezes custa a crer que estas pessoas existem e que acreditem piamente nestas teorias rocambolescas. Numa época em que o conhecimento científico está disponível à distância de um clique, é inacreditável que haja quem acredite em tantas patranhas e que siga os seus criadores como se de uma seita se tratasse.

O autor mergulhou nas águas mais profundas da internet, tentou perceber a forma como a mente destes chalupas funciona, descontruíu estas ideias e produziu um texto muito divertido. Obviamente, que estas pessoas facilitam o trabalho dos humoristas. Só a descrição da teoria em questão já dá vontade de rir mas o Guilherme Fonseca consegue aumentar o nosso nível de gargalhadas. E até me levou a descobriu teorias das quais eu nunca tinha ouvido falar.

Só me resta agradecer o trabalho árduo que o Guilherme Fonseca teve em escavar estes temas. Pobre coitado. 

"Acontece muito confundir-se um negacionista com um teórico da conspiracao, mas são conceitos diferentes. Um negacionista recusa-se a acreditar numa evidência, um teórico da conspiração preenche o vazio da falta de evidência com teorias inventadas. E diferente. Um negacionista diz: 《A covid não existe!. Um teórico da conspiração responde: 《Não isso é estupidez, a covid existe! Mas existe porque um laboratório 6chines recebeu dinheiro de um filho perdido do Tupac com o Elvis para espalhar a doença, porque os aliens querem mandar no mundo para comprarem um terreno em Estremoz para exploração de mirtilos. Essa é que é essa!》

Um teórico da conspiração é um negacionista, mas um negacionista pode não ser (ainda) um teórico da conspiração. No fundo, o negacionistas é a criança que se recusa a acreditar que o Telmo do 6. B deu um beijo a Cátia, apesar de os ter visto com a língua na boca um do outro depois da aula de Matematica. Um teorico da conspiracao é o que diz que o Telmo não deu o beijo a Cátia porque aquela Cátia é, na verdade, uma criatura de uma raça de lagartos humanóides que se infiltraram em lugares de poder pelo mundo para dominarem os humanos. Mas isso seria mais complicado de explicar, e agora é preciso ir ali perguntar ao Telmo a que e6 que sabe a língua da Cátia.
Quando um negacionista levanta questões sobre a veracidade de algo, o teórico da conspiração aparece com respostas estapafúrdias.
O negacionista levanta dúvidas que ninguém tem; o teórico traz as respostas de que ninguém se lembrou."

 

 

Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago

Charneca em flor, 17.01.23

IMG_20230114_170513.jpg

"O Evangelho segundo Jesus Cristo" é a obra mais polémica de José Saramago. A sua primeira edição data de 1991. A publicação causou enorme perturbação no país, não só nos sectores católicos como no governo e em grande parte da sociedade nacional. Aliás, este livro foi vetado pelo Secretário de Estado da Cultura como candidato ao Prémio Europeu da Literatura por não respeitar a moral cristã. Estes acontecimentos precipitaram a saída de José Saramago de Portugal para ir viver para a ilha espanhola de Lanzarote.

Este livro começa um pouco antes do nascimento de Jesus e termina com a sua morte mas o autor  conta a história de forma completamente diferente daquilo que é aceite pela doutrina da Igreja Católica. José Saramago cometeu a ousadia de humanizar a Sagrada Família das mais variadas formas. Para além disso, o deus retratado por José Saramago é cruel, irascível e vingativo. Ao contrário daquilo que dizem as Sagradas Escrituras, este Jesus é um homem frágil, cheio de dúvidas e que, em vez de se sacrificar voluntariamente para salvação dos homens, se sente ludibriado por Deus,

Se não tivesse sido proposto no grupo de Leitura Conjunta de Saramago, talvez nunca tivesse pegado neste livro. A visão que José Saramago tem sobre Deus e sobre a religião é totalmente diferente da minha forma de olhar estes temas. Se fosse interpretar este livro, apenas, à luz da doutrina cristã não teria sido capaz de o ler. No entanto, aqui não se trata de doutrina, mas de literatura. E esta é uma obra magnífica, sem sombra de dúvida. Li este livro com grande prazer porque, mesmo conhecendo as linhas gerais desta história, fiquei fascinada com a forma como José Saramago construíu este evangelho alternativo. 

Ao contrário de "Caim" de que não gostei especialmente e até me chocou nalgumas passagens, "O Evangelho segundo Jesus Cristo" não me chocou de forma nenhuma, nem sequer nas passagens que se referem à concepção de Jesus ou à sua relação com Maria Madalena. Mesmo que Jesus Cristo tivesse sido mais humano e menos divino, eu continuaria a acreditar na Sua presença na minha vida.

Seja como fôr, este livro é um dos melhores que José Saramago escreveu e faz parte dos melhores livros que li em 2022.

"Está visto que as pessoas não andam todas por aí a pedir milagres, cada um de nós, com o tempo, habitua-se às suas pequenas ou medianas mazelas e com elas vai vivendo sem que alguma vez lhe passe pela cabeça importunar os altos poderes, mas os pecados são outra coisa, os pecados atormentam por baixo do que se vê, não são perna coxa nem braço tolhido, não são lepra de fora, mas são lepra de dentro. Por isso tinha tido Deus muita razão quando a Jesus disse que todo o homem tem pelo menos um pecado de que se arrepender, e o mais corrente e normal é que tenha muitíssimos."

Daqui fala o Sam, Dustin Thao

Charneca em flor, 11.01.23

IMG_20230109_223606.jpg

"Daqui fala o Sam" foi a escolha de Dezembro, da Joana da Silva, para o Clube do Livra-te. Aproveito já para esclarecer que tenho consciência de que não sou o público-alvo deste romance mas, nos últimos anos, tenho tentado diversificar as minhas leituras. As propostas do Livra-te são uma boa forma de ler livros que, de outra maneira, não me chamariam a atenção.

"Daqui fala o Sam" tem como personagem central, uma jovem de 17 anos, Julie Clarke. Como todas as jovens, Julie tem sonhos por realizar e projectos para concretizar, ao lado do seu namorado Sam. Até que tudo muda quando Sam morre num trágico acidente. A dor profunda que sente faz com queira "enterrar" as recordações que partilhara com Sam. No entanto, um dia resolve ligar para o telemóvel dele para ouvir, pela última vez, a mensagem de voicemail. Só que Sam atende a chamada e, de forma surpreendente, estabelece-se uma comunicação entre eles para que Julie se possa despedir. 

Não sendo um livro marcante, foi uma boa leitura. Na minha opinião, Dustin Thao descreveu bem a forma como um adolescente lida com a morte de alguém próximo, seja um namorado ou um amigo. A premissa de que o autor partiu é muito boa tendo em conta a relação que, hoje em dia, se estabelece com o telemóvel. Não tenho a certeza de que a ideia tenha sido bem concretizada uma vez que o autor deixou muitas pontas soltas e pormenores que mereciam um maior desenvolvimento. 

Nesta fase da minha vida, e embora me tenha comovido, esta história não me apelou tanto ao sentimento como seria de esperar. Se o lesse aos 18 anos, provocaria muitas lágrimas, com toda a certeza.

Seja como fôr, escrever sobre o tema do luto na adolescência parece-se muito meritório. Não seria bom que houvesse uma última oportunidade para nos despedirmos daqueles que amamos?!

"Não te preocupes. Temos todo o tempo do mundo para fazer isso. Todo o tempo do mundo... As palavras ecoam por mim enquanto uma aragem entra pela janela, volteando sobre a minha pele. Fito o relógio sobre a porta. Não tinha reparado nele antes. Faltam-lhe os ponteiros.
Lá fora continua a não haver nada além de nuvens reluzentes. Agora que penso nisso, há quanto tempo é que o sol se esta a pôr?

- Passa-se alguma coisa? - A voz do Sam traz-me de volta para ele. Pestanejo algumas vezes."

Jane Eyre, Charlotte Brontë

Charneca em flor, 30.12.22

IMG_20221229_212925.jpg

No mês de Novembro, ainda houve tempo para a leitura do clássico "Jane Eyre". Este livro foi escolhido pelos seguidores do Livra-te para leitura conjunta do penúltimo mês de 2022.

Conhecemos Jane Eyre como uma criança órfã e infeliz, acolhida pela viúva do seu tio. Jane Eyre cresce sem amor e carinho até que é enviada para um colégio interno onde a sua situação não é muito melhor mas adquire as ferramentas para se tornar, também ela, professora. Quando a sua amiga directora abandona o colégio depois de se casar, Jane Eyre resolve tentar a sorte como preceptora. Jane Eyre é contratada para Thornfield Hall de forma a ensinar a pequena Adèle, uma criança acolhida pelo taciturno Mr. Rochester.

A minha edição deste livro tem esta capa linda mas encontrei alguns erros na edição de texto. Nada que me impedisse de ficar encantada com este livro. Apesar de Charlotte Brontë contar uma história que se enquadra na época em que foi escrita, nas entrelinhas encontramos um pensamento à frente do seu tempo. As identidades femininas e masculinas têm características muito marcadas mas a nossa personagem central apresenta uma certa dualidade na maneira como decide os passos a tomar na sua vida. No séc. XIX era muito difícil a uma mulher subsistir sem familiares que olhassem por ela mas isso não impede Jane Eyre de ir à luta e tentar ser dona do seu destino. Embora este livro tenha cerca de 175 anos, percebe-se continuam a existir pessoas com as mesmas características das personagens deste romance, sejam femininas ou masculinas. Afinal, aquilo que nos torna aquilo que somos não depende das épocas mas atravessa os tempos.

"- Isso vai além dos poderes m6agicos, senhor. - E acrescentei, só para mim: 《Uns olhos apaixonados são todo o encanto necessário: para eles, és belo suficientemente; ou, por outra, a tua rudeza vale mais do que todas as belezas.》

O Sr. Rochester lera por vezes nos meus pensamentos com uma tal clareza que me parecia incompreensível. Desta vez, porém, nanão o reparou na breve resposta que eu lhe dera e pôs-se a sorrir, com um sorriso só dele, mas que só raramente lhe aparecia como se o achasse bom de mais para as ocasiões ordinárias; esse sorriso era um verdadeiro raio de sol... Senti-me iluminada, inundada, aquecida."