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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Doce Tóquio, Durian Sukegawa

Charneca em flor, 28.08.23

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Este livro foi mais um que li através da audição. "Doce Tóquio" tem uma excelente edição em audiolivro. 

Esta obra é tão doce como o título promete. A acção começa na loja Doraharu onde Sentarô, um homem não muito feliz, passa os dias confeccionado dorayaki, uma espécie de panquecas recheadas com uma pasta doce de feijão. A loja situa-se na Rua das Cerejeiras, um espaço dominado pelas lojas vazias e pelas cerejeiras que vão marcando a passagem do tempo. No momento em que conhecemos Sentarô, as cerejeiras estão em flor o que contribuí para um maior movimento nas ruas. A dada altura, Sentarô repara numa idosa, Tokue, que o observa. Este encontro será marcante para o homem mudando a sua postura perante a vida.

"Doce Tóquio" é uma bonita história sobre como até a amizade mais improvável pode influenciar a nossa vida e mudar a nossa perspectiva sobre os acontecimentos que pontuam a nossa vida. O autor, através da abordagem de um antigo estigma da sociedade, faz-nos também pensar sobre como os preconceitos sociais são injustos ao serem obstáculos para que nos deixemos "tocar" pelos outros.

"Doce Tóquio" aqueceu-me o coração num momento difícil. A literatura é, tantas vezes, bálsamo para as nossas dores e remédio para as doenças da alma.


"Depois de experimentarmos a alegria de ver o mundo e de estarmos livres de novo, percebemos que quanto maior era a alegria mais sentíamos a dor do tempo perdido e das vidas que nunca poderiam ser devolvidas. Talvez compreenda esse sentimento. Quando saíamos daqui, voltávamos sempre exaustos. Não apenas exaustão física, mas uma exaustão mais profunda de sofrer uma dor que nunca desaparecerá."

 

Doidos por Livros, Emily Henry

Charneca em flor, 09.08.23

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Em Março, devido a um problema na visão, aproveitei a minha assinatura do Kobo Plus para ouvir alguns audiolivros uma vez que estava com dificuldade em ler. Graças ao Kobo+Leya há já uma selecção de audiolivros muito interessante, com boa narração e edição. Um dos livros que li desta forma foi "Doidos por Livros" de Emily Henry e foi a 2a vez que li esta autora*. A receita "pessoas que gostam de livros" com romance tem tudo o que é preciso para me alegrar quando estou mais em baixo.

As figuras centrais são Nora, agente literária, e Charlie, editor. No início encontram-se em Nova Iorque, onde ambos vivem, para um possível consórcio profissional mas as coisas não correm muito bem entre eles. Alguns anos depois, uma personagem deliciosa, a irmã de Nora, Libby arrasta-a para uma pequena cidade do interior, cenário de um dos livros escrito por uma das autoras de Nora. Libby está investida em fazer com que a sua irmã viva um romance recheado por todos os clichés típicos dos romances. Nem tudo acontece exactamente como o planeado até porque Nora tem que lidar com a presença inesperada de Charlie na cidade.

"Doidos por Livros" é uma excelente leitura para as férias  Os clichés são completamente propositados, a autora brinca com a forma como se constrói um  romance e aflora um pouco o funcionamento do mercado editorial americano. Não será o melhor livro que lerei este ano mas foi uma leitura/audição muito prazerosa e divertida. Acho que vou voltar a ler Emily Henry quando precisar de uma leitura aconchegante.

 

"Já fiz isso antes, e nunca me arrependi, propriamente. Sempre tive coisas pelas quais estar grata.
A vida é mesmo assim. Estamos sempre a tomar decisões, a escolher caminhos que nos afastam do resto, antes de podermos ver onde eles iam dar. Talvez seja por isso que nós, como espécie, gostamos tanto de histórias. Todas aquelas oportunidades para fazer de novo, oportunidades para viver as vidas que nunca teremos."

*O outro livro que li de Emily Henry foi este

 

A Hora da Estrela, Clarice Lispector

Charneca em flor, 26.07.23

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Quando, em 2019, li o livro de contos "Laços de Família" de Clarice Lispector nunca imaginei que ia demorar tanto em tempo a voltar a pegar numa obra desta escritora brasileira. No passado mês de Março, "A Hora da Estrela" foi o livro escolhido por um dos meus clubes de leitura, o Clube de Leitura do podcast Ponto Final, Parágrafo.

Nessa altura enfrentava um problema de saúde que me dificultava a leitura de forma tradicional por isso optei pelo audiolivro. A narração é feita pela actriz brasileira Mel Lisboa que eu já conheci de uma audiosérie do Spotify. A excelente dicção e a interpretação de Mel Lisboa tornaram esta experiência muito mais enriquecedora.

Se a escrita de Clarice Lispector já me tinha fascinado anteriormente, este romance/ novela ajudou a consolidar a minha opinião sobre a autora. O que ela faz com as palavras da nossa língua comum é magia mas a história e a maneira como a estruturou elevam a qualidade deste livro

A "voz" que conta a história é de um escritor (o seu alter ego, talvez) que se propõe a contar a triste história de Macabéa, uma jovem nordestina humilde, ignorante e ingénua. Clarice Lispector utiliza esta desgraçada personagem para se debruçar sobre a pobreza, as injustiças sociais ou as consequências da deficiente instrução que tantos anos depois* continuam a ser uma constante no Brasil e um pouco por todo o mundo.

Não sei se me deixei cativar mais pela história ou mais pela tapeçaria cerzida pelas palavras de Clarice Lispector. Para mim é um mistério como é que algumas pessoas têm a capacidade de fazer arte literária utilizando os mesmos vocábulos que qualquer outra pessoa. 

Para quem só conhece as suas citações, amplamente partilhadas, não deixe de se deslumbrar com a escrita que se estende para lá das frases mais conhecidas.

"Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria.

Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudo substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordai? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem poderia mordê-lo, morrendo de fome. "

 

*Este romance foi publicado, pela primeira vez, em 1977

Mãe, Doce Mar, João Pinto Coelho

Charneca em flor, 28.06.23

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"Mãe , Doce Mar" foi um dos lvros do Clube de Leitura do Livra-te no mês de Fevereiro. Embora já tenha passado algum tempo desde que o li, acho que ainda vou a tempo de partilhar o quanto gostei deste livro. Já conhecia o talento deste autor através do "Perguntem a Sarah Gross" e tinha muita curiosidade em ler outros livros dele. No entanto, este livro foge dos temas habituais que inspiram João Pinto Coelho. 

 

A personagem central de "Mãe, Doce Mar" é o jovem Noah que conhecemos aos 12 anos quando, depois de viver a infância num orfanato, conhece a mãe num aeroporto. Pouco tempo depois, Noah vai viver com a mãe e a sua existência divide-se entre Cape Cod, onde passam o Verão, e Connecticut. A relação entre os dois é feita de silêncios e mistérios como uma estrada que nenhum dos dois consegue atravessar. Na sua existência, repleta de segredos, cruza-se uma personagem peculiar com quem desenvolve uma amizade improvável, Frank O' Leary, um padre jesuíta.

O livro está organizado em várias partes. Em cada uma vamos antevendo alguns momentos do passado destas personagens que, no fim, nos ajudarão a unir as pontas que o autor foi deixando soltas para desvendar o mistério que envolve a existência de Noah.

"Mãe, Doce Mar" é uma história em que percebemos que o amor tem caminhos muito tortuosos, por vezes solitários, e que cada um aprende a lidar com os seus fantasmas de uma forma ou de outra. O final é inesperado mas genial.

A escrita maravilhosa de João Pinto Coelho é um dos pontos fortes do livro mas a forma como ele o desenvolveu é brilhante. É impressionante como, em menos de 200 páginas, o autor nos consegue arrebatar. É possível entregar uma boa história ao leitor de forma sucinta.

Adorei e recomendo vivamente.

"Sim, desisto-me!

A renúncia é a poesia que me prova a eternidade. Talvez Deus seja só isso, o alforge de moedas que largo na beira da estrada ou a queda para o abismo só por querer estar com alguém; talvez seja a outra face, o beijo de dois amantes, a dor impronunciável de uma perda sem remédio.

Ama e faz o que quiseres,

a mais dura das sentenças que deixou Santo Agostinho. Já a encontrei em T-shirts, nas paredes das estações do Metro de Nova Iorque, por vezes atribuída a outros autores mais prováveis, poetas do Underground, Mama Cass, Mick Jagger..., cer- tamente nunca escrita no sentido original.

Ama e quê?

Estúpidos! Já nada há a fazer, se amar for o que eu penso: carregar alguém às costas e subir descalço a montanha por um caminho de vidros, esse açúcar espezinhado com que salgamos as feridas."

 

As Coisas que Faltam, Rita da Nova

Charneca em flor, 12.06.23

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Este livro entrou na minha vida muito antes do seu lançamento que ocorreu há quase 4 meses. Acompanho a autora há muitos anos seja através do seu blog, do Instagram ou dos podcasts. A Rita tem feito um óptimo trabalho ao nível do estímulo da leitura junto dos seus inúmeros seguidores e acredito que tem contribuído para que muitos jovens tenham começado a ler. Já há muito que a Rita partilhava connosco seu sonho de escrever um livro e durante o processo de escrita foi lançando alguns pormenores que nos aguçavam o apetite.

Quando o seu primeiro livro, a solo*, se tornou uma realidade, fiquei muito feliz e não podia faltar ao lançamento do seu "As Coisas que Faltam". Para mim, foi um momento muito emotivo. Claro que o li com avidez apesar de estar com alguns problemas oculares na altura. A experiência de leitura foi maravilhosa desde a dedicatória até à ultima linha dos agradecimentos. 

Em "As Coisas que Faltam" acompanhamos o crescimento de Ana Luís a partir do momento em que, habituada a que lhe digam que não, resolve perguntar à mãe se podia conhecer o pai. Ana Luís tinha só 8 anos mas já nessa idade sentia que havia algo que lhe faltava para se sentir completa. Ao longo deste livro vamos acompanhando esta busca, não só pelo pai que não conhece, mas também pelo seu lugar no mundo.

A história de Ana Luís tem a simplicidade de uma história, aparentemente, comum e a profundidade daquilo que guardamos no mais fundo da nossa existência. O que será que mais nos define? Aquilo que nos falta ou aquilo que esteve sempre ao nosso lado? Aquilo que não passou de um sonho ou aquilo que conseguimos realizar?

A escritora Rita da Nova escreveu um livro bem ao gosto da Rita da Nova leitora. Uma boa história, bem escrita, emotiva e com o tamanho certo para nos cativar sem nos maçar .

Embora a minha vida tenha sido muito diferente da vida de Ana Luís, senti por ela uma enorme empatia e identifiquei-me muito com a jovem.

Como já se tornou óbvio, recomendo muito a leitura d' "As Coisas que Faltam". Que seja um bom estímulo para a escrita do seu próximo livro.

"Há quem diga que «família feliz» é só o nome de um prato que se encontra nos restaurantes chineses. E, de facto, partilhar o mesmo sangue é mais vezes causa de conflito que de tranquilidade. As famílias são ecossistemas, e os ecossistemas têm uma tendência natural para o caos, para a confusão, para o combate - como uma casa que, mal se acaba de limpar, começa logo a dar sinais de sujidade. Pode dizer-se tudo isto sobre todas as famílias do mundo, mas eu não conseguia acreditar que a família do meu pai, aquela trindade perfeita, pudesse ser qualquer outra coisa senão a família mais feliz que alguma existiu."

 

*A Rita da Nova já, anteriormente, publicara "Terapia de Casal" em co-autoria com o seu marido e parceiro do podcast com o mesmo nome, Guilherme Fonseca.

"Os Anos", Annie Ernaux

Charneca em flor, 16.05.23

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Nos últimos meses, alguns problemas de saúde têm-me mantido afastada da internet. O último post que publiquei aqui já tem 2 meses e já não partilho as minhas leituras desde Fevereiro. Foi mais ou menos por essa altura que li o livro "Os Anos" da autora francesa Annie Ernaux, a qual foi distinguida com o Prémio Nobel da Literatura no ano passado.

"Os Anos" foi a proposta de leitura em Fevereiro  do Clube de Leitura Ponto Final, Parágrafo. 

Esta obra introduziu-me à escrita de Annie Ernaux. "Os Anos" é considerado um romance autobiográfico apesar de ser escrito na 3a pessoa do singular. As memórias da autora vão sendo despertadas por inúmeras fotografias descritas ao longo do livro. No entanto, o relato parte do pessoal para o colectivo abordando, não só o que aconteceu na sua vida, mas também no seu país, e no mundo, no período entre 1941 e 2006.

O facto de um autor ser distinguido com o mais importante prémio literário do mundo não é garantia de que o leitor fique maravilhado desde o primeiro momento. A minha experiência com Annie Ernaux não foi a melhor de todas. As razões para esta sensação podem ser inúmeras. Às vezes, aquele não é o momento para nos cruzamos com determinado livro.

Avancei na leitura de forma muito lenta o que pode ter sido causado pelo início dos meus problemas de saúde a nível ocular mas também por ter intercalado "Os Anos" com outro livro que despertava mais o meu interesse.

As primeiras páginas foram muito enfadonhas para mim e provocaram-me uma sensação de repetição porque tinha acabado de ler um romance que se passava na mesma época. Só comecei a achar mais interessante quando o relato se foi aproximando do ano em que nasci. Ou seja, desde o fim dos anos 60 até aos primeiros anos do séc. XXI.

Um dos pormenores que achei curioso foi a descrição das fotografias que vão pontuando o texto como se fossem os cliques que despoletavam as recordações. Também gosto das refeições festivas com familiares ou amigos e das conversas que tinham à volta da mesa. O que não funcionou para mim foi a forma como o livro está estruturado, com aparente falta de ligação entre as frases e os parágrafos e sem capítulos organizados. Não é o meu estilo de livro mas vou dar uma nova oportunidade à autora uma vez que já tenho outro na prateleira dos livros para ler ou na TBR como dizem os jovens .

 
"Essa forma suscetível de conter toda a sua vida, que ela pensou poder inferir a partir de uma sensação, e a cujo processo teve de renunciar, teria origem na sensação que experimenta, quando está de olhos fechados na praia ao sol ou num quarto de hotel, de se desmultiplicar, desdobrando-se e existindo corporalmente em vários lugares da sua vida, acedendo assim a um tempo palimpsesto. Até agora, em termos de escrita, essa sensação não a levou a lugar nenhum nem a qualquer tipo de conhecimento. Só estimula o desejo de escrever — e de mais nada, como nos minutos que sucedem ao orgasmo."

 

 

"Toda a luz que não podemos ver", Anthony Doerr

Charneca em flor, 14.05.23

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Este livro foi uma das escolhas de Janeiro no Clube do Livra-te. Eu nunca tinha ouvido falar dele nem do seu autor mas, na altura do lançamento, foi considerado um dos melhores livros do ano. Em 2015, "Toda a luz que não podemos ver" foi distinguido com o Prémio Pulitzer. 

A história situa-se, maioritariamente, na altura da II Guerra Mundial e gira em torno de duas personagens. Marie-Laure é uma jovem cega que vive com o pai, responsável por todas as chaves do Museu Nacional de História Natural, em Paris, e é nesse ambiente que cresce. Quando os alemães se aproximam de Paris, Marie-Laure e o pai fogem da cidade e acabam por ir até Saint-Maló, uma cidade costeira da Bretanha. Werner Pfenning é um órfão alemão com um enorme interesse por rádios o que se traduz num grande talento para pôr esses aparelhos a funcionar. Essa sua inclinação acaba por conduzi-lo a uma escola militar e, consequentemente, à guerra.

Esta obra está organizada em capítulos curtos que vão alternando a história de Marie-Laure com a história de Werner levando o leitor a olhar para os dois lados do conflito.  Inicialmente, achei que os capítulos curtos iriam facilitar a leitura mas tal não aconteceu. Embora a história seja muito interessante, a escrita não é muito cativante uma vez que algumas passagens se tornam muito repetitivas. A leitura foi mais difícil do que eu estava à espera.

Aquilo que extraí de mais positivo desta história foi o facto de ser possível olhar para a guerra pela perspectiva dos soldados alemães. A grande maioria das obras sobre esta época partem do ponto de vista dos Aliados, dos países ocupados ou da Resistência. Acho importante que se perceba que os soldados alemães podem ter ido para a guerra, não por grande convicção, mas sim porque foram obrigados pelas circunstâncias da sua vida tal como acontece, nos dias de hoje, em todos os conflitos que existem. O jovem soldado alemão, Werner, foi capaz de conquistar a minha empatia.

"Toda a luz que não podemos ver" encantou-me por um outro motivo. Grande parte da acção decorre na cidade de Saint-Maló onde já tive oportunidade de passar algumas horas. Nunca imaginaria que os habitantes da cidade bonita e soalheira que encontrei tinham passado por uma dura ocupação alemã e que a cidade, cuja muralha data do séc. XII, tinha sido destruida, quase por completo, quando os amerocanos chegaram para libertar a cidade do jugo germânico. A reconstrução de Saint-Maló levou 30 anos.

Não sendo um livro perfeito, tem alguns pontos muito positivos.


"Certa noite, Werner e Jutta sintonizam uma transmissão com algumas interferências na qual um homem novo, num francês melífluo com sotaque, fala sobre luz.
Como é sabido, meninos, o cérebro está trancado na mais absoluta escuridão, diz a voz. Flutua num líquido de cor clara dentro do crânio, nunca à luz. E, no entanto, o mundo que constrói na mente está repleto de luz. É povoado por cor e movimento. Portanto, meninos, como é que o cérebro, que vive sem uma centelha de luz, nos constrói um mundo pleno dela?"

"- Sabes qual é a maior lição da História? É que a História é aquilo que os vencedores disserem que ela é. Eis a lição. Quem ganha é quem decide a História. Agimos em nome do nosso interesse pessoal. Essa é que é a verdade. Indica-me uma nação ou uma pessoa que não o faça. O truque consiste em descortinar onde estão os nossos interesses."

 

P.S - Só agora reparei que tinha este post em rascunho, desde Fevereiro, mas tinha-me esquecido de o publicar.

"City of Girls", Elizabeth Gilbert

Charneca em flor, 21.02.23

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"City of Girls" foi um dos livros escolhidos para o mês de Janeiro no Clube do Livra-te. Por coincidência, foi o primeiro livro lido no meu Kobo, recentemente adquirido. Desta feita, optei por ler em inglês.

Elizabeth Gilbert tornou-se conhecida pelo livro de memórias,  "Eat, Pray, Love"* que deu origem ao filme com o mesmo nome protagonizado por Julia Roberts. Eu nunca tinha lido nada desta autora nem fazia ideia de que era romancista.

A narrativa de "City of Girls" está organizada em forma de uma longa carta que a protagonista, Vivien, escreve como resposta a Angela. Esta personagem, cuja identidade se mantém misteriosa durante quase todo o livro, pretende saber qual relação entre o seu próprio pai e Vivien. Assim Vivien, já idosa, mergulha nas suas memórias e conta-lhe toda a sua vida.

O relato começa no Verão de 1940 quando Vivien tinha 19 anos. Devido ao seu insucesso escolar, e sem saberem como lidar com o seu temperamento rebelde, os pais resolvem enviar a jovem para Nova Iorque. Ali vai viver com a sua tia Peg, proprietária de um edifício que incluí o teatro Lily Playhoyse, do qual é a directora. Vivien chega à cidade com uma mala e uma máquina de costura. O seu talento para costurar torna Vivien na responsável pelos figurinos das humildes peças de teatro levadas à cena pela tia Peg. Ao mesmo tempo, a jovem começa a tomar contacto com inúmeras personagens excêntricas e com um ambiente boémio muito diferente daquele a que estava habituada. Em Nova Iorque desenvolve a sua natureza feminina e independente. Vivien faz amizades, diverte-se, apaixona-se e vive momentos felizes até que tudo muda por uma má decisão.

A história de Vivien decorre durante 70 anos desde os anos 40 do séc. XX até à primeira década do séc. XXI. Não se limita a ser uma história de vida mas é também uma história de todas as mudanças sociais ocorridas durante esses anos. A vida de Vivien é influenciada pelas convenções sociais, mesmo que ela não lhes obedeça, pelo fantasma da Segunda Guerra Mundial, na qual os Estados Unidos da América tiveram um papel preponderante, pelo ambiente pós-guerra que transformou Nova Iorque numa cidade diferente e também pelas mudanças sociais ocorridas nos anos 60. No entanto, Vivien e as pessoas que lhe eram mais próximas sempre pautaram a sua vida por valores muito avançados para a época. A cidade de Nova Iorque descrita por Elizabeth Gilbert é uma verdadeira cidade de mulheres pouco convencionais, independentes e emancipadas.

Tal como Vivien vai amadurecendo ao longo do livro, a escrita de Elizabeth Gilbert também evolui. A história é dividida em 2 grandes blocos e, na minha opinião, a forma de escrever também é muito diferente nesses 2 blocos. Uma das características que mais me cativou foi o humor que se vai encontrando ao longo do texto. Esta leitura foi muito agradável e divertida, gostei mesmo muito.

 

"New York City in 1940

There will never be another New York like that one. I'm not defaming all the New Yorks that came before 1940, or all the New Yorks that came after 1940. They all have their importance. But this is a city that gets born anew in the fresh eyes of every young person who arrives here for the first time. So that city, that place - newley created for my eyes only - will never exist again. It is preserved forever in my memory like an orchid trapped in a paperweight. That city will always be my perfect New York.

You can have your perfect New York, and other people can have theirs - but that one will always be mine."

 

*Comer, Orar, Amar

Lendários, Tracy Deonn

Charneca em flor, 14.02.23

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Desde que resolvi aderir a clubes de leitura, tenho lido uns quantos livros fora da minha zona de conforto. Este "Lendários" é um bom exemplo disso uma vez que se trata de um livro de fantasia. Aliás já não lia livros deste género desde o fim da adolescência quando li a série "As Brumas de Avalon"

A leitura deste livro teve alguns percalços. Primeiro que tudo, não lhe consegui pegar em Dezembro* devido a este livro. Em seguida, quando estava completamente embrenhada na história, descobri um defeito no meu exemplar e tive que o devolver e esperar por um novo. Percalços à parte, foi uma leitura mesmo fantástica como é natural tendo em conta o estilo .

"Lendários" conta a lenda do Rei Artur mas de uma forma actualizada. A figura central é Bree, uma jovem que vai estudar para uma Universidade da Carolina do Norte ao mesmo tempo que tenta lidar com o luto pela morte repentina da mãe. Na sua primeira saída à noite, assiste a um ataque demoníaco acabando por se cruzar com os Lendários, uma sociedade secreta que reúne estudantes universitários que se afirmam descendentes dos Cavaleiros da Távola Redonda. Através do contacto com os Lendários, Bree confronta-se com os seus próprios poderes que desconhecia e que vai ter que aprender a controlar.

A autora conseguiu desenvolver uma história muito interessante e tão envolvente que não se consegue deixar de ler até à última página. Só que depois encontramos um final aberto que estende uma ponte para o segundo livro da saga.

A escrita é mesmo cativante e Tracy Deonn conseguiu abordar temas muito diferentes, e inesperados, de forma magistral. Nunca imaginei que fosse possível entrelaçar a cultura afro-americana sulista com a lenda do Rei Artur. Esta junção de temas permitiu incluir o racismo como um dos temas mais importantes deste "Lendários". Também nunca imaginaria encontrar aqui uma excelente reflexão sobre o luto e sobre como a perda de alguém transforma a vida de quem fica. A autora até conseguiu incluir uma personagem não binária de forma muito natural. Nem todos os autores o conseguem.

Tal como alguns dos livros que li no ano passado, eu não faço parte do público-alvo deste livro mas adorei esta leitura. Fiquei muito envolvida com estas personagens e com esta história. "Lendários" lê-se com muita facilidade apesar das suas mais de 500 páginas. Foi muito bom viajar no tempo e relembrar-me da jovem que se embrenhou n' "As Brumas de Avalon".

 

"Ser capaz de seguir o rasto da própria família até tão longe é algo que nunca imaginei. A minha familia apenas conhece a geração que se seguiu a Emancipação. De repente, é difícil estar aqui e absorver a magnificência da Muralha e não sentir uma inegável sensação de ignorância e inadequação. Depois, uma onda de frustração, porque provavelmente houve alguém que quis gravar tudo, mas quem poderia ter escrito a história da minha família até aqui? Quem teria sido capacitado, ensinado, autorizado a fazê-lo? Onde está a nossa Muralha? Uma Muralha que não me faça sentir perdida, mas sim encontrada. Um Muralha que se sobreponha a qualquer pessoa que lhe ponha os olhos em cima.

Em vez de admirada, sinto-me... injustiça."

 

P.S. - Emancipação refere-se à Proclamação da Emancipação assinada em 1862 pelo presidente dos EUA, Abraham Lincoln, dando início ao processo de abolição da escravatura nos estados confederados norte-americanos.

*"Lendários" foi uma das escolhas de Dezembro no Clube do Livra-te.