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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

"Como matar a tua família", Bella Mackie

Charneca em flor, 28.08.22

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Se não tivesse sido sugerido no Clube de Leitura do Livra-te provavelmente nunca pegaria neste livro. E porquê? Porque tenho preconceito com livros que têm muita publicidade à volta deles. Se calhar, fui só eu mas vi este livro por todo lado, seja fisicamente seja na internet. Aliás, na capa tem a menção "#1 do Top de Vendas no Reino Unido". Por vezes, posso até deixar de ler livros interessantes mas preconceitos são o que são. Desta vez, a minha percepção não estava de todo errada porque não gostei assim muito do livro.

O ponto de partida da história até é interessante. A personagem central, e narradora, é Grace, uma jovem que nasceu de uma relação extra-conjugal de um dos homens mais ricos da sociedade londrina. Nem o pai nem a família paterna reconheceram a sua existência e nunca lhe deram qualquer tipo de apoio ou assistência, nem sequer quando perde a mãe na adolescência. Como vingança, decide assassinar toda a família paterna para depois reclamar a herança. Ou seja, logo nos primeiros capítulos se percebe quase o livro todo. A morte de cada elemento da família vai sendo descrita ao pormenor. Para mim, a partir da 3a morte, toda esta explicação já começa a ser exaustiva demais. A dada altura, é introduzido um novo problema na vida de Grace que interrompe a sua vingança. Essa circunstância poderia ter aumentado o meu interesse mas eu já estava um bocadinho farta da Grace e já ia lendo em esforço.

A autora fez algum humor ao longo do texto mas, para mim, isso não foi suficiente para me fazer esquecer o quanto o livro estava a ser chato. A escrita pareceu-me confusa e Bella Mackie exagerou na explicação dos crimes. Às vezes, é preciso deixar algum mistério. O fim foi mais ou menos inesperado e, quanto a mim, foi o mais interessante de toda a história.

Não abandonei a leitura porque tenho muita dificuldade em deixar um livro a meio e ainda mais por ter sido um livro sugerido por um clube de leitura. Se calhar, devia-o ter feito porque me sobrava mais tempo para ler bons livros.

"Ainda hoje fico tensa só de pensar nesse homem. Obrigo-me a respirar bem fundo. Sou uma mestre do autocontrolo, mas não foi algo que tivesse aprendido naturalmente. Em criança, costumava ter tremendos ataques de cólera e atirava-me para o chão quando alguma coisa me desagradava, enquanto a minha mãe ficava a olhar para mim com uma expressão divertida e pedia desculpa as pessoas que estavam connosco. Esse sentido dramático ainda persiste dentro de mim, mas há muito que aprendi a contê-lo. Se queremos executar bem um plano, executar um conjunto de pessoas, não podemos deixar as nossas emoções em roda livre. Isso tornaria tudo muito atabalhoado, e nada podia ser pior do que sermos apanhados
por termos sido demasiado autocomplacentes no que diz respeito ao nosso autocontrolo. Tal como quando era criança, acabei por sofrer a indignidade de ter de usar uma casa de banho a um metro da cama, mas pelo menos não foi por me ter denunciado graças a uma vocação insensata para o drama."

Spring, Ali Smith

Charneca em flor, 24.06.22

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Embora o Verão já tenha começado, o clima farrusco que se tem vivido nos últimos dias faz-nos pensar que a Primavera ainda não começou. Assim faz todo o sentido falar deste livro, "Spring". Este livro faz parte de uma tetralogia escrita pela britânica Ali Smith e que têm o nome das estações do ano. "Autumn" e "Winter" já li. Agora só fica a faltar o "Summer".

Embora se consiga estabelecer alguma ligação entre todas as obras, as histórias são independentes.

Em "Spring" encontramos 3 personagens centrais, um realizador de televisão em declínio, uma jovem que trabalha como segurança nas instalações de uma unidade de detenção de emigrantes e uma adolescente muito peculiar. Na parte inicial do livro, Ali Smith descreve alguns pormenores da vida do realizador e da jovem separadamente até que os seus destinos acabam por se cruzar.

Ali Smith volta a abordar alguns temas que já se encontravam nos outros dois volumes como sejam a velhice, a solidão, a política, a emigração ou os excluídos da sociedade, os invisíveis. Em "Spring", as condições de vida de um certo tipo de emigrantes é um dos temas que a autora mais desenvolve.

Pelo que me foi dado perceber, os nomes dos livros não tem, directamente, a ver com o espaço temporal em que as histórias decorrem mas sim com o ambiente que se vive. Neste caso considero que "Spring" tem a ver com a renovação e com a oportunidade de um certo recomeço que é dada às personagens. 

A escrita de Ali Smith continua a ser um dos pontos fortes e, provavelmente, é o mais cativante. A experiência de leitura em inglês continua a ser interessante e enriquecedora. 

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"There are much less bloody ways to hope for spring, the girl said. Better ways of working fruitfully with the climate and the seasons, than by sacrificing people to them. And anyway, you’re only doing it because some of you get off on the brutality. One or two people always do, always will. And the rest of you are worried that if you don’t do what everybody else is doing then the ones who get off on it might decide to choose you for the next sacrifice."

"April the anarchic, the final month, of spring the great connective. Pass any flowering bush or tree and you can’t not hear it, the buzz of the engine, the new life already at work in it, time’s factory."

 

P.S. - Obrigada, Rita da Nova, por me teres "apresentado" Ali Smith.

 

 

Margarida Espantada, Rodrigo Guedes de Carvalho

Versão Audiobook

Charneca em flor, 21.11.21

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"Margarida Espantada" foi a minha primeira experiência de ficção com audiobook. Já tinha recorrido a este meio mas para não-ficção já que ouvi um livro/documentário sobre várias gerações de emigrantes portugueses em França. Acresce a particularidade de "Margarida Espantada" ser lida pelo autor, Rodrigo Guedes de Carvalho. Provavelmente devido à sua longa experiência como pivô do Jornal da Noite da SIC, Rodrigo Guedes de Carvalho tem um excelente dicção e lê com o dinamismo inerente à sua história.

O livro debruça-se pela história de uma família abastada portuguesa constituída pelos pais e 4 irmãos. Embora pudesse parecer que aquela família nunca teria problemas, a sua existência acaba por ser muitíssimo atribulada pontuado por acontecimentos trágicos. O autor aproveita esta história para abordar, de forma brilhante, temas de grande actualidade como a doença mental, a dependência e a violência doméstica. O enredo está bem concebido e as personagens foram muito bem construídas.

Um pormenor que me chamou a atenção foi o facto de cada personagem ser designada por 2 nomes próprios, Margarida Rosa, Joana Ofélia, António Carlos ou Aida Vanda são alguns dos exemplos. Para mim, este pormenor significa que cada personagem, tal como cada pessoa, têm 2 lados, o que mostram aos outros e o que guardam para si. Achei esta opção muito curiosa.

Há, no entanto, alguns aspectos de que não gostei tanto mas que, talvez, tenham a ver com o facto de ter ouvido o texto em vez de o ter lido. Por um lado, o facto de o autor/narrador repetir o título do livro sempre que iniciava um novo capítulo. Na verdade isso irritou-me um pouco e distraía-me no início do capítulo. Por outro lado, e embora algumas passagens sejam quase poéticas, acho que o autor utilizou, num ou noutro capítulo, vernáculo em exagero. Para mim não havia necessidade porque é perfeitamente possível descrever o horror e o drama sem recorrer a essa subterfúgio de linguagem. Até acredito que isso me incomodou mais por estar a ouvir em vez de ler como já disse.

Seja como fôr, este foi o meu primeiro contacto com a escrita deste autor e talvez experimente ler outros livros. Em relação aos audiobooks, a experiência também será para repetir embora não haja muitas opções em português. Uma das hipóteses seria "Cem Anos de Solidão" de Gabriel Garcia Márquez que é narrado, precisamente, por Rodrigo Guedes de Carvalho.

"Margarida Rosa decidiu logo em pequena que nada nesta vida lhe causaria dano.
Há crianças assim, muito do seu tempo é passado a desenhar planos para o que lá vem. Não é bom nem mau. Não adianta dizermos a estas crianças

- Não te rales agora com isso, tens muito tempo
porque elas não fazem caso e mesmo que fizessem não significa
que conseguissem parar.
E o que deve acontecer com os vícios, que muita gente liga às vidas adultas, gastas e desiludidas, quando na verdade talvez comecem muito cedo, essas aflições com certos pensamentos e exigências absurdas do corpo.

Margarida Rosa pôs-se a imaginar o mundo antes de realmente o conhecer. Ainda a vida se limitava a casa, escola, outra vez para casa, e em casa subia e descia escadas, sempre a cirandar desde que aprendeu a andar, sempre indecisa entre o quarto lá em cima e o jardim grande lá em baixo. A mãe percebeu cedo que a filha gostaria sempre mais de saborear trajectos do que chegar a um destino."

Se isto é um homem, Primo Levi

Charneca em flor, 07.06.21

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O autor de “Se isto é um homem", Primo Levi, era um químico, italiano e judeu que sobreviveu à vida num campo de concentração nos últimos anos da 2ª Guerra Mundial. Esta obra é um impressionante relato na primeira pessoa daquilo que se passou num dos mais negros períodos na História da Humanidade. Primo Levi viveu num dos campos de concentração de Auschwitz durante pouco mais de 1 ano. Essa experiência levou-o a escrever este livro em que a descreve de forma realista, objectiva e rigorosa sem cair na tentação do compreensível melodrama. Com ele sentimos humilhação, fome, frio, cansaço extremo, medo, resignação ou mesmo vergonha por aquilo em que se tornou para conseguir sobreviver ao campo. Porque para o regime nazi não foi suficiente exterminar seres indesejáveis – embora a maioria fossem judeus, também havia pessoas com outras origens – nas câmaras de gás. Aos presos que tinham condições para trabalhar, o regime “matava" de outra forma, através da humilhação destruía-se aquilo que torna um indivíduo num homem fazendo emergir os seus instintos mais primitivos.

Quem quiser, verdadeiramente, perceber o que foi o Holocausto tem aqui uma das melhores fontes de conhecimento. Esqueçam os livros que povoam os escaparates das nossas livrarias ostentando Auschwitz ou Birkenau no título. O Holocausto e o extermínio de judeus e outros seres humanos não foi uma fantasia de um qualquer escritor mais ou menos talentoso. Aconteceu e isso não se pode negar. Se o negarmos, abrimos a porta à sua repetição. Por melhor que um escritor investigue, aquilo que escrever nunca se conseguirá comparar aquilo que escreveu quem o sentiu na pele.

“Se isto é um homem" é um livro que fere a nossa sensibilidade e que nos faz pensar, “como é possível que um ser humano tenha feito isto a outro ser humano?”. No entanto, ainda bem que o li. A literatura deve servir para nos desassossegar e para alimentar em nós a empatia por quem nos rodeia, mesmo que seja alguém muito diferente de nós.

“Então, pela primeira vez nos apercebemos de que a nossa língua carece de palavras para exprimir esfa ofensa, a destruição de um homem. Num ápice, com uma intuição quase profética, a realidade revelou-se-nos: chegámos ao fundo. Mais para baixo do que isto, não se pode ir: não há nem se pode imaginar condição humana mais miserável. Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão e, se nos escutassem, não nos perceberiam. Tirar-nos-ão tem o nome: se quisermos conservá-lo, teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós tal como éramos, ainda sobreviva.”

Novas Cartas Portuguesas

Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa

Charneca em flor, 25.05.21

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Embora o mês de Maio ainda não tenha acabado, eu já terminei a minha leitura deste mês do clube/desafio de leitura a que aderi este ano. O tema proposto era "Um livro que tenha sido proibido". Já há uns tempos que tinha optado pelo "Novas Cartas Portuguesas" de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.

Este livro começou a ser escrito em 1971 e foi publicada em Abril de 1972. As autoras partiram do romance epistolar "Lettres Portugaises" do séc. XVII cuja autoria é polémica porque foi atribuída a Mariana Alcoforado, freira enclausurada em Beja, mas também a um autor francês. O livro "Cartas Portuguesas" é um conjunto de 5 cartas de amor supostamente enviadas pela freira Mariana Alcoforado a um oficial francês. Tendo este amor proibido como ponto de partida, as "Três Marias" elaboraram este livro a 6 mãos que albergou uma série de estilos literários como sejam o epistolar, o poético e o romance.

A meu ver, o livro pretendia chamar a atenção para a condição feminina na época da ditadura fascista que se vivia em Portugal. As autoras abordaram, em grande medida, a opressão da mulher à vontade do marido e da família mas também escreveram sobre a sexualidade, o prazer feminino e até afloraram, levemente, a orientação sexual. As "Três Marias" não deixaram de abordar outros problemas que afectavam tanto as mulheres como os homens nos anos 70 como, por exemplo, a guerra colonial e a emigração.

A direcção literária do obra foi de outra mulher corajosa, Natália Correia, que se recusou a fazer cortes naquilo que as autoras escreveram.  Como resultado, a primeira edição foi apreendida e destruída em 3 dias e as autoras foram acusadas de "pornografia e atentado ao pudor". Nos interrogatórios foram instadas no sentido de identificarem quem tinha escrito o quê. Nunca o revelaram até hoje, passados 50 anos e quando só resta uma das autoras viva. Embora tenham ido a tribunal acabaram por não ser julgadas graças à Revolução dos Cravos que acabou com a ditadura e interrompeu o processo. O processo judicial valeu-lhes a solidariedade de inúmeros intelectuais portugueses e estrangeiros bem como de inúmeras feministas. Aliás, "Novas Cartas Portuguesas" é considerado, actualmente, um dos primeiros manifestos feministas.

Na minha opinião, este não é um livro fácil de ler, antes pelo contrário. Esta edição é uma edição anotada o que ajuda imenso porque há certos pormenores que só se entendem se compreendermos as referências políticas e literárias bem como o contexto histórico em que a obra foi dada ao prelo. Nalgumas linhas encontramos, realmente, referências sexuais mas que fazem sentido no âmbito da "história" que as autoras queriam contar. Percebo que a publicação deste livro tenha sido um escândalo, não só pela abordagem sexual mas porque pretendia romper com a ordem estabelecida na sociedade portuguesa. Infelizmente, considero certas passagens muito actuais e acredito que se a obra fosse publicada hoje constituíria, novamente, um escândalo. Chegámos à 3a década do séc. XXI mas as mentalidades retrógradas subsistem. As circunstâncias mudaram mas ainda há muito por fazer para se atingir a igualdade entre homens e mulheres.

Este é um livro que faz pensar. E hoje em dia há tanta preguiça em pôr os neurónios a funcionar, não é verdade? Mas fazer pensar é um dos objectivos mais nobres da literatura.

"Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício.

(...)

Só de nostalgia faremos uma irmandade e um convento, Soror Mariana das cinco cartas. Só de vinganças, faremos um  Outubro,  um Maio, e novo mês para cobrir o calendário. E de nós, o que faremos?"

 

Uma História da Leitura, Alberto Manguel

"A leitura é, desde o início, a apoteose da escrita"

Charneca em flor, 28.04.21

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Alberto Manguel é argentino mas já viveu em inúmeros países. Trabalhou como escritor, tradutor, editor e foi director da Biblioteca Nacional da Argentina. Desde criança que os livros ocupam um grande espaço na sua vida. Da sua biblioteca pessoal fazem parte mais de 40000 livros que foram oferecidos, recentemente, à cidade de Lisboa onde darão origem ao Centro de Estudos da História da Leitura do qual será director. Já ouvi falar dele há algum tempo e achei que este livro se enquadrava muito bem no tema do mês de Abril do clube de leitura a que aderi este ano, "Um livro que fala de livros".

Não é o livro mais fácil de ler já que não se trata de um romance. Não é um livro que se leia por distracção, embora ler seja uma excelente distracção. Também não é uma História exaustiva da leitura. A meu ver, é a História que resultou da investigação que o autor fez sobre a leitura ao longo dos tempos e dos diferentes caminhos a que essa investigação o foram conduzindo. Para além disso, o livro é enriquecido pela própria experiência, ao longo da vida, do autor enquanto leitor. 

Através desta obra confrontei, igualmente, a História da Leitura da Humanidade com o percurso que eu própria tenho feito enquanto leitora. Por exemplo, no capítulo "Ler imagens" regressei aos anos 70 quando ainda não sabia ler e inventava histórias enquanto olhava para os desenhos dos meus livros.

Esta obra está dividida em 4 partes mas há 2 partes principais. A primeira grande secção aborda vários aspectos da leitura, daquilo que pode dificultar ou facilitar este acto, de como a leitura começou por ser uma actividade de elites e de como evoluiu até ser acessível a todos. A outra grande parte baseia-se no leitor e na maneira como o leitor se relaciona com os livros, como escolhe o que lê e como interpreta aquilo que lê.

A maneira como este livro está construído faz-nos perceber porque é que Alberto Manguel escolheu chamar-lhe "Uma História da Leitura" e não "A História da Leitura". Esta a História de Manguel mas se fosse a minha História, ou de outro amante dos livros, seria muito diferente, com toda a certeza.

"No entanto, sob este acaso aparente, há um método: este livro que vejo diante mim é a história da leitura, mas também dos leitores comuns, dos indivíduos que, ao longo das eras, preferiram certos livros a outros, aceitaram nalguns casos o veredicto dos mais velhos, mas noutras ocasiões resgataram do passado títulos esquecidos, ou arrumaram nas prateleiras das suas bibliotecas os eleitos dos seus contemporâneos. Esta é a história das suas pequenas vitórias e dos seus sofrimentos secretos, e da maneira como essas coisas se passaram. Este livro é a crónica minuciosa da maneira como tudo isso aconteceu, na vida quotidiana de algumas pessoas comuns, descoberta, aqui e ali, em memórias de família, anais municipais, descrições da vida em lugares distantes e em tempos recuados."

Normal People, Sally Rooney

Charneca em flor, 20.02.21

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No seguimento do desafio Uma dúzia de livros, em Fevereiro foi proposto o seguinte tema: um livro fora da tua zona de conforto. Como leio, habitualmente, em português, achei que se seria interessante ler um livro em inglês. Optei pelo "Nomal People" de Sally Rooney. Posso não ter comprrendido todas as palavras mas acho que consegui perceber, perfeitamente, o enredo.

Já há uns meses que tinha ouvido falar deste livro e da série que lhe deu origem. Pelo que vi, pareceu-me que a história, e o estilo, seriam adequados para eu fazer esta tentativa. E foi uma boa opção. A linguagem é acessível, as personagens são cativantes e a história, embora possa parecer banal, é muito boa. Pelo menos, eu gostei . Embora nunca me tenha acontecido nada parecido com as situações vividas por Marianne e Connell, senti-me identificada com um e com outro. Logo, no início, enquanto são adolescentes, a autora faz uma excelente análise de como se deseja a identificação com o grupo e como essa integração pode ser difícil e dolorosa. Ao longo do livro são abordados, de maneira mais ou menos clara, muitos problemas que afectam a sociedade actual. Outro ponto interessante, e real, é a constatação de que ninguém é totalmente bom ou totalmente mau. Podemos ser boas pessoas ou nem por isso, alternadamente e em alturas diferentes da vida. Nem sempre conseguimos perceber isso e a imagem que temos de nós próprios é muito diferente da imagem que os outros têm de nós.

"Normal People" pode parecer, "apenas", uma história de amor mas é muito mais abrangente do que isso. Até porque há muitas formas de amar. A maneira como nos sentimos amados, ou não, no início da nossa vida vai, definitivamente, influenciar a nossa  maneira de amar e de nos deixarmos amar.

"She closes her eyes. He probaly won't come back, she thinks. Or he will, differently. What they have now they can never have back again. But for her the pain of loneliness will be nothing to the pain that she used to feel, of being unworth. He brought her goodness like a gift and now it belongs to her. Meanwhile his life opens out before him in all directions at once. They've done a lot of good each other. Really, she thinks, really. People can really change one another."

 

O Rapaz Selvagem, Paolo Cognetti

Charneca em flor, 16.02.21

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O primeiro livro que li deste autor italiano foi "As Oito Montanhas" que muito apreciei. "O Rapaz Selvagem" foi publicado alguns anos antes daquele e também tem a montanha como pano de fundo. Desta feita trata-se um romance autobiográfico. A determinada altura da vida, por volta dos 30 anos, Paolo atravessa um Inverno difícil na cidade sentindo-se desmotivado e sem capacidade para escrever. Até aos 20 anos, o escritor passava todos os verões na montanha sentindo-se verdadeiramente livre. Durante os meses que vivia na cidade, obedecia às regras da cidade mas quando chegava à montanha tornava-se num rapaz selvagem.

"Eram todas liberdades que eu também apreciava, tanto explorá-las a fundo me parecia importante aos vinte anos, porém, com trinta anos já quase havia esquecido a sensação de estar sozinho num bosque, de me banhar nu num ribeiro ou de correr ao longo de um cume, acima do qual existe somente céu."

Depois daquele Inverno complicado, Paolo resolve voltar à montanha para "reencontrar uma antiga e profunda parte que sentia que tinha perdido"

Assim isola-se numa cabana nos Alpes, munido de livros e cadernos, para se reencontrar com o rapaz selvagem que fora e, quiça, voltar a escrever. Durante os primeiros tempos, a sua companhia limita-se às àrvores e aos animais da montanha, lebres, camurças, raposas ou cervos. e a própria montanha com as suas particularidades, mas, progressivamente, acaba por procurar companhia humana, "Não era grande coisa como eremita: tinha ido para a montanha para estar sozinho e, ao invés, não fazia outra coisa senão criar amizades."

Como eu não estou isolada do mundo, li este livro no contexto actual que vivemos. Devido à pandemia há quem esteja em isolamento por estar doente, ou por ter tido contacto com doentes, há idosos que não saem de casa há semanas ou meses e há quem cumpra, criteriosamente, o confinamento decretado pelo estado de emergência actual. Embora eu já tenha dito que não me custa estar em casa, consigo compreender que há pessoas, de todas as idades, que sofrem com a falta de interacção com os outros. Há quem tenha dificuldade em conviver consigo próprio. No entanto, é preciso vivermos bem connosco próprios para podermos viver bem com os outros.

Voltando ao livro "O Rapaz Selvagem", acho que a experiência de Paolo provou que o humano, por mais que seja capaz de viver isolado na natureza, é um ser iminantemente social. Só descobrimos o nosso eu verdadeiro nestas duas dimensões, sozinhos e em sociedade.

"O Rapaz Selvagem" é um livro pequeno, na versão ebook tem apenas 100 páginas, lê-se muito bem porque Paolo Cognetti escreve muito bem. Esta obra, para além de nos guiar na viagem ao interior do escritor, ainda tem a vantagem de nos  levar a descobrir os caminhos mais complexos dos Alpes.

"Continuei a subir: já ninguém me conseguia parar. Estava já na crist entre os dois vales da minha vida, caminhava sobre placas de pedras fendidas pelo gelo e sobre aquele musgo muito macio que cresce a três mil metros de altura. De um lado da vertente, o da idade adulta, o céu estava limpo e de um azul tão intenso que parecia ter massa e volume. Do lado da infância, elevavam-se salpicos de nuvens que se encaracolavam e dissolviam aos meus pés. Do lado de lá passara vinte anos da minha vida, do lado de cá, os últimos meses: estava feliz por serem lugares distintos, mas próximos."

 

 

 

A Cidade de Vapor, Carlos Ruiz Zafón

Charneca em flor, 31.01.21

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Este livro é uma pequena preciosidade. Carlos Ruiz Zafón faleceu em Junho de 2020. Esta obra estava a ser preparada quando o escritor ficou doente. Como acabou por falecer, esta reunião dos seus contos foi publicada postumamente. Zafón é um dos mais brilhantes escritores contemporâneos. Ninguém fica indifente às histórias que ele criou. A série "Cemitério dos Livros Esquecidos" é fenomenal. Ainda não me aventurei a ler o último, "Labirinto dos Espíritos", porque é uma empresa e tanto já que o livro tem mais de 800 páginas. Por isso foi com imenso prazer que li este pequeno tesouro. São, apenas, 11 contos, completamente, imersos no universo característico de Zafón. As ruas de Barcelona, as sombras, as névoas, as estranhas personagens são uma constante tal com a sua cativante maneira de contar histórias.. Até Gaudí, o brilhante arquitecto catalão, faz uma aparição num dos contos. Para quem ainda não leu nenhum dos livros de Carlos Ruiz Zafón, esta é uma obra para começar. Nestas páginas, Zafón parece "ensaiar" aquilo que, mais tarde, deu origem ao "Cemitério dos Livros Esquecidos". Para quem é fã, pode fazer a sua despedida do falecido escritor através destes pequenos contos.

"Sempre invejei essa capacidade que algumas pessoas têm de esquecer, pessoas para as quais o passado é uma mudança de estação ou uns sapatos velhos que basta condenar ao fundo de um armário para que fiquem incapazes de refazer os passos perdidos. Eu tive o infortúnio de recordar tudo e de tudo, por sua vez, se recordar de mim. Recordo uma primeira infância de frio e solidão,  de instantes mortos a contemplar o cinzento dos dias e aquele espelho negro que enfeitiçava o olhar do meu pai. Quase não tenho memória de nenhum amigo. Sou capaz de evocar rostos de miúdos do Barrio de la Ribera com que por vezes brincava ou lutava na rua, mas  nenhum que quisesse resgatar do país da indiferença. Nenhum exceto o de Blanca."

 

Onde Mora a Felicidade, Pearl S. Buck

Charneca em flor, 23.01.21

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Pearl S. Buck era uma escritora norte-americana que em 1938 se tornou a primeira mulher norte-americana a ser galardoada com o Prémio Nobel da Literatura. Esta autora nasceu no final do séc XIX e faleceu em 1973. Pearl S. Buck cresceu na China e viveu nesse país oriental até 1932, ano em que começou a Guerra Civil Chinesa. O tempo que viveu na China muito influenciou a sua obra. 

Eu nunca tinha ouvido falar nesta escritora mas esta bonita capa, bem como o título, foram muito apelativos. Comprei este livro há uns meses e peguei nele durante o meu isolamento.

A escrita é muito descritiva e muito bonita. Transporta-nos para o universo da casa de uma grande família chinesa e conseguimos visualisar cada recanto daqueles quartos, salas ou pátios. A história gira à volta de uma mulher, Madame Wu, que chega aos 40 anos e sente que a sua missão como esposa está terminada. Assim resolve separar-se, fisicamente, do marido e decide que ele deve receber uma concubina. Na altura em que a história se desenrola o sistema de concubinato começa a não ser muito bem visto pelas gerações mais novas. A intenção dessa decisão é a necessidade que Madame Wu sente de se desenvolver espiritualmente e de se instruir de uma maneira que não era habitual para uma mulher na sociedade chinesa. A sua mudança de vida vai influenciar todo o equilíbrio da casa Wu e modificar a vida da família.

O enredo é salpicado por imensas personagens deliciosas, umas mais densas do que outras,  que, juntas, contribuem para uma história cativante.

Gostei muito de ler este livro. A mestria de Pearl S. Buck consegue transmitir perfeitamente o lugar da mulher na sociedade chinesa da altura. A autora leva-nos a comparar esse papel com o papel da mulher nos dias de hoje e faz-nos pensar que, apesar do livro ter sido escrito há mais de 70 anos, ainda há muito por fazer. 

Na minha opinião, é um excelente livro. Intemporal.

"《A tua mente é excelente para uma mulher》, dissera ele por fim. 《Eu diria mesmo, minha filha, que se o teu cérebro estivesse dentro do crânio de um homem, poderias ter feito os Exames Imperiais e tê-los-ias passado com distinção e, dessa forma, ter-te-ias tornado um funcionário do Estado. Mas o teu cérebro não está dentro do crânio de um homem, está no de uma mulher. O sangue de uma mulber inspira-o, o coração de uma mulher pulsa nele e está circunscrito por aquilo que a vida de uma mulher deve ser. Numa mulher não está certo que o cérebro cresça para lá do corpo.》"

"Certo dia, lembrava-se muito bem, tinham estado sentados ali mesmo, na biblioteca, ele de um lado da grande mesa esculpida e ela do outro, não frente a frente, de tal modo que tivessem de olhar para o rosto um do outro, mas com a mesa entre os dois e ambos virados para as portas que davam para o pátio. Estava um belo dia, o ar extremamente límpido e o sol tão forte que as cores das pedras que pavimentavam o pátio, geralmente cinzentas, tinham matizes de azul e rosa, e veios de prata. As suas orquídeas estavam a florir, púrpuras. No lago, os peixes lançavam-se como setas e precipitavam-se sobre os raios de sol que entravam, oblíquos, dentro de água."