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Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

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Novas Cartas Portuguesas

Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa

Charneca em flor, 25.05.21

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Embora o mês de Maio ainda não tenha acabado, eu já terminei a minha leitura deste mês do clube/desafio de leitura a que aderi este ano. O tema proposto era "Um livro que tenha sido proibido". Já há uns tempos que tinha optado pelo "Novas Cartas Portuguesas" de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.

Este livro começou a ser escrito em 1971 e foi publicada em Abril de 1972. As autoras partiram do romance epistolar "Lettres Portugaises" do séc. XVII cuja autoria é polémica porque foi atribuída a Mariana Alcoforado, freira enclausurada em Beja, mas também a um autor francês. O livro "Cartas Portuguesas" é um conjunto de 5 cartas de amor supostamente enviadas pela freira Mariana Alcoforado a um oficial francês. Tendo este amor proibido como ponto de partida, as "Três Marias" elaboraram este livro a 6 mãos que albergou uma série de estilos literários como sejam o epistolar, o poético e o romance.

A meu ver, o livro pretendia chamar a atenção para a condição feminina na época da ditadura fascista que se vivia em Portugal. As autoras abordaram, em grande medida, a opressão da mulher à vontade do marido e da família mas também escreveram sobre a sexualidade, o prazer feminino e até afloraram, levemente, a orientação sexual. As "Três Marias" não deixaram de abordar outros problemas que afectavam tanto as mulheres como os homens nos anos 70 como, por exemplo, a guerra colonial e a emigração.

A direcção literária do obra foi de outra mulher corajosa, Natália Correia, que se recusou a fazer cortes naquilo que as autoras escreveram.  Como resultado, a primeira edição foi apreendida e destruída em 3 dias e as autoras foram acusadas de "pornografia e atentado ao pudor". Nos interrogatórios foram instadas no sentido de identificarem quem tinha escrito o quê. Nunca o revelaram até hoje, passados 50 anos e quando só resta uma das autoras viva. Embora tenham ido a tribunal acabaram por não ser julgadas graças à Revolução dos Cravos que acabou com a ditadura e interrompeu o processo. O processo judicial valeu-lhes a solidariedade de inúmeros intelectuais portugueses e estrangeiros bem como de inúmeras feministas. Aliás, "Novas Cartas Portuguesas" é considerado, actualmente, um dos primeiros manifestos feministas.

Na minha opinião, este não é um livro fácil de ler, antes pelo contrário. Esta edição é uma edição anotada o que ajuda imenso porque há certos pormenores que só se entendem se compreendermos as referências políticas e literárias bem como o contexto histórico em que a obra foi dada ao prelo. Nalgumas linhas encontramos, realmente, referências sexuais mas que fazem sentido no âmbito da "história" que as autoras queriam contar. Percebo que a publicação deste livro tenha sido um escândalo, não só pela abordagem sexual mas porque pretendia romper com a ordem estabelecida na sociedade portuguesa. Infelizmente, considero certas passagens muito actuais e acredito que se a obra fosse publicada hoje constituíria, novamente, um escândalo. Chegámos à 3a década do séc. XXI mas as mentalidades retrógradas subsistem. As circunstâncias mudaram mas ainda há muito por fazer para se atingir a igualdade entre homens e mulheres.

Este é um livro que faz pensar. E hoje em dia há tanta preguiça em pôr os neurónios a funcionar, não é verdade? Mas fazer pensar é um dos objectivos mais nobres da literatura.

"Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício.

(...)

Só de nostalgia faremos uma irmandade e um convento, Soror Mariana das cinco cartas. Só de vinganças, faremos um  Outubro,  um Maio, e novo mês para cobrir o calendário. E de nós, o que faremos?"

 

Maria Velho da Costa 1938-2020

Charneca em flor, 24.05.20

Sempre que morre um escritor, a cultura fica mais pobre. Faleceu, ontem, Maria Velho da Costa, prémio Camões em 2002 entre outros inúmeros prémios com que foi agraciada ao longo dos seus 82 anos de vida.

O seu nome ficará para sempre associado ao livro "Novas Cartas Portuguesas" em co-autoria com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Tenho ideia de ter trazido esse livro da biblioteca na adolescência mas não devia ter, ainda, maturidade para o ler porque lembro-me do título mas não me lembro do conteúdo. Se calhar tenho que voltar a tentar.

Aquela obra das Três Marias foi uma imensa pedrada no charco do Estado Novo porque se tratava de "uma obra literária que denunciava a repressão e a censura do regime do Estado Novo, que exaltava a condição feminina e a liberdade de valores para as mulheres". As autoras foram perseguidas pela PIDE/DGS e foram sujeitas a um processo judicial que ficou suspenso pelo 25 de Abril.

A sua voz, considerada renovadora nos anos 60 do século passado, nunca deixou de ser um bocadinho incómoda. Quando recebeu o Prémio Carreira da Associação Portuguesa de Autores afirmou "Os regimes totalitários sabem que a palavra e o seu cume de fulgor, a literatura e a poesia, são um perigo. Por isso queimam, ignoram e analfabetizam, o que vem dar à mesma atrofia do espírito, mais pobreza na pobreza".

As vozes incómodas têm feito sempre falta ao longo do tempo. Esta calou-se para sempre mas podemos sempre ouvi-la através daquilo que escreveu.

 

P.S. - post baseado nesta notícia.