"rapariga, mulher, outra", Bernardine Evaristo
Há algum tempo que eu me apercebi que leio, maioritariamente, livros escritos por homens. Daí ter feito algumas tentativas de privilegiar obras escritas por mulheres. Nos últimos meses tenho ouvido, recorrentemente, que se lêem muitos livros escritos pelo típico homem branco, heterossexual e ocidental. Assim quando peguei neste livro percebi que era uma excelente oportunidade para uma leitura que rompia com este estereótipo. Teria sido uma excelente opção para o clube de leitura, no passado mês de Fevereiro, cujo propósito era ler um livro fora da minha zona de conforto.
A autora, Bernardine Evaristo, é anglo-nigeriana e já tem obra extensa e abrangente em termos de género literário. Este romance, “rapariga, mulher, outra" foi galardoado com o Man Booker Prize de 2019, foi considerado livro de ficção do ano do British Book Awards 2020 (e a sua autora foi considerada autora do ano), foi, ainda, finalista do Women's Prize de Ficção de 2020 e do Orwell Prize de Ficção Política de 2020. Com todo este reconhecimento, comecei a ler este livro com muita expectativa.
Tal como o título indica, esta é um livro sobre mulheres, maioritariamente negras, com vivências diferentes mas que têm em comum a multiculturalidade resultante da diáspora e do colonialismo britânico. As personagens centrais são doze e a autora conseguiu construir estas personagens com bastante densidade. É-nos dado a conhecer as suas histórias de vida, as suas relações amorosas e de amizade bem como a batalha que cada uma empreende para encontrar o seu lugar na sociedade. No entanto, mais do que um romance ou um conjunto de histórias, este livro é um manifesto político que aborda temas intemporais como a orientação sexual, a identidade de género, a violência doméstica, o racismo estrutural ou quotidiano, a falta de oportunidades ou a pobreza, física e de espírito. Nem o Brexit foi esquecido.
O livro lê-se muito bem até porque a escrita de Bernardine é muito cativante e divertida e é fácil identificarmo-nos com as situações vividas pelas personagens mesmo para quem tem uma realidade muito diferente daquelas que são retratadas nesta obra. Até o grafismo do livro saí fora daquilo que são os parâmetros normais de um romance havendo, nalgumas partes, uma interessante distribuição das palavras nas páginas.
Para mim, foi também uma lição de tolerância e empatia e essa é uma das funções da literatura que faz cada vez mais falta neste mundo confuso em que vivemos.
"esta criatura indómita que habita este lugar selvagem, com cabelos cor de metal e uns olhos ferozes que se cravam em nós
é mãe dela
são o mesmo
são feitas do mesmo
que interessa a cor da pele? porque chegou a achar que isso interessa?
neste momento o que ela sente é tão puro e primevo que quase a esmaga
são mãe e filha e uma e outra estão a reajustar toda a ideia que faziam do seu eu
a sua mãe está tão perto que pode tocar-lhe
chegou a temer não sentir nada, ou que a mãe não demonstrasse ter-lhe amor ou afeto e fosse fria
mas como se enganou, estão as duas com os olhos rasos de lágrimas e é como se os anos estivessem a andar muito depressa para trás até que deixa de existir tudo o que uma e outra viveram
não importa o que sentem ou dizer seja o que for
só importa que estão ali
juntas."