Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Livros de Cabeceira e outras histórias

Todas as formas de cultura são fontes de felicidade!

Pão de Açúcar por Afonso Reis Cabral

Charneca em flor, 28.09.20

1540-1 (1).jpg

 

Afonso Reis Cabral é um jovem escritor de 30 anos mas já conseguiu ganhar 2 dos mais importantes prémios literários portugueses. Com "O meu irmão" foi o vencedor do Prémio Leya em 2014. No ano passado, com este "Pão de Açúcar", juntou-se ao grupo dos mais brilhantes escritores contemporâneos de língua portugues vencendo o Prémio Saramago. Nem sempre escrever um livro premiado significa que o leitor comum o aprecie. Não faço ideia se estes livros foram muito vendidos mas eu, uma leitora comum, gostei muito de os ler. Tal como escrevi na minha análise d' "O meu irmão ", é difícil de acreditar que estas histórias, tão duras e dramáticas, existam dentro deste jovem sorridente e simpático. Na altura do Prémio Leya, tive oportunidade de trocar meia dúzia de palavras com ele e o Afonso Reis Cabral é muito afável. 

Neste "Pão de Açúcar" o autor revisitou um caso verídico que chocou o Porto bem como todo o país em 2006. Num poço da cave de um prédio abandonado foi encontrado um corpo, nu da cintura para baixo, e com marcas de agressões. Era a transsexual brasileira Gisberta e as agressões tinham sido cometidas por um grupo de jovens, alguns muito novos, que viviam na instituição Oficina de São José.

Este romance, em que se confunde a ficção com a realidade, fornece-nos o relato do ponto de vista de um dos jovens, Rafa, aquele que primeiro descobre Gi na cave do prédio que devia ter sido o supermercado "Pão de Açúcar". Como o próprio autor escreve na sua nota de agradecimento, usando as palavras da jornalista Catarina Marques Rodrigues, "Nesta história conhece-se o princípio e conhece-se o fim. Não se conhece o meio." Afonso Reis Cabral criou esse "meio" cerzindo um enredo perfeitamente plausível. Uma história dura e chocante, mas realista. Podia muito bem ter acontecido assim. Ao longo do livro conhecemos a vida da Gisberta mas também as histórias de vida dramáticas de alguns dos jovens envolvidos. Espreitamos para as péssimas condições em que os menores viviam naquela instituição de acolhimento, entretanto encerrada. Confrontamo-nos com o ponto a que pode chegar a degradação humana e percebemos que cada pessoa pode ter em si um lado mau e um lado bom. Ninguém é totalmente bom nem totalmente mau. As atitudes que tomamos individualmente podem ser totalmente diferentes daquelas que tomamos em grupo e ser determinantes para o resto da nossa vida. Apesar deste caso já se ter passado há 14 anos, continua a ser actual e faz-nos falta pensar sobre ele. Estamos ainda mais perto de que estes casos de violência contra aqueles que são diferentes se repitam. E não é por virarmos a cara que eles deixam de acontecer.

Afonso Reis Cabral teceu este enredo de maneira brilhante confirmando o talento que já se antevira n' "O meu irmão". Nem quero imaginar a pressão que ele deve sentir em frente à folha branca depois desta projecção conseguida com 2 prémios importantes no espaço de, apenas, 5 anos. Espero que tenha uma carreira repleta de sucessos. 

"Avancei às apalpadelas a tocar no frio das colunas, indiferente à herança do Pão de Açúcar e certo de que seria bom rever a Gi, reconciliarmo-nos. Voltar a cozinhar para ela, ouvir-lhe os gemidos de bicho enquanto comia o meu pão, a minha massa. De novo a ajudá-la, por fim compreendendo que os lugares certos na vida são os lugares errados. Como na cave, ao lado da Gi."

"O Coro dos Defuntos", António Tavares

Charneca em flor, 01.02.19

250x.jpeg

 

Afinal, o  meu desafio literário está a correr muito bem. Já consegui ler 2 livros este ano . Ontem de manhã terminei "O coro dos defuntos", Prémio Leya de 2015. O relato situa-se, em termos de espaço físico, numa aldeia das Beiras com algumas passagens pela emigração portuguesa pelos Estados Unidos  e pela Europa. Em termos temporais decorre de 1968 até 1974. O autor criou uma série de personagens fantásticas que habitam na aldeia que serve de pano de fundo às várias histórias, o taberneiro, a vidente que tanto ajuda a nascer como parteira como a seguir arranja os mortos para a sepultura, a prostituta, o padre, uma viúva negra que enterra uns quantos maridos. Enfim, um livro muito sui generis, irónico, um excelente retrato de portugalidade, um instântaneo de uma certa época. O que eu achei mais curioso foi o vocabulário de que até já falei no post anterior. Andei eu intrigada com as estranhas palavras que fui encontrando ao longo do texto e no fim do livro até havia um glossário. Se calhar tenho que ler o livro todo outra vez mas indo consultar o significado das palavras. Recomendo a leitura deste "O coro dos defuntos" especialmente a quem tiver curiosidade sobre o país pré-revolução de Abril.

"Diz ela que numa manhã dos primeiros dias de Agosto a avó voltou a ter achaques inusitados. Insistia em que sonhava com um velho a dar uma queda. O homem ia para se sentar numa cadeira e esta não estava no seu sítio. Diz que em todo o sonho se ouvia o som cavo do mar, como já é raro nos meses de estio. Mas ouvia- se."

"A dona Rainha pouco se importou. No fundo, toda a aldeia lhe era indiferente. Assumia um ar de superioridade  como se reinasse de forma efectiva. Era das poucas mulheres que não descia a uma leiva ou a um tremendal nem na altura das natalícias avencas, do tremoço ou das favas. Quando passava defronte da taberna do Tritão, os homens, como lagartos ao sol atascados no mais vil dos carrascões, chamavam-lhe regalona, forma tentadora e sensual que era quase um convite a fazerem notar a sua disponível virilidade; ela, inquieta como a mulher com andar de cabra de Cesário que passa rápida junto aos calceteiros, nem os via. Era certo que os escutava naquele regalona, arrastado pelas línguas encortiçadas do álcool, e que um frémito lhe percorria o espinhaço e a fazia revessar das entranhas mais íntimas, mas nunca os deixava  notar."

P.S. - leiva - terreno de agricultar; tremedal - terreno alagadiço; regalona ou regalório - grande prazer.

"O meu irmão", Afonso Reis Cabral

Charneca em flor, 04.06.15

Infelizmente não tenho tido oportunidade de actualizar o blogue como gostaria. Sendo assim o livro que acabei de ler não chegou a morar ali ao lado. Desta vez optei pelo último premiado com o Prémio Leya. Este autor, Afonso Reis Cabral, foi muito falado na altura que se conheceu o vencedor. Por um lado pela unanimidade que gerou no júri mas também por se tratar de um trineto de Eça de Queiroz. Este livro aborda a relação, nem sempre fácil, entre 2 irmãos, o mais novo com Síndrome de Down. A relação fica mais próxima depois da morte dos pais já que o irmão mais velho, o narrador da história, resolve mudar de vida e de cidade para poder acolher o irmão. Quando abrimos a primeira página encontramos os 2 irmãos a caminho de uma pequena aldeia onde a família tinha uma casa.

Durante essa estadia o irmão mais velho vai passando em revista a vida dos 2 irmãos, a sua relação, as dificuldades de viver com um irmão deficiente e vai tentando aproximar-se do irmão Miguel. Para isso tem que lutar contra a imagem de Luciana, outra deficiente, por quem Miguel nutre sentimentos amorosos tão profundos que ocupam todo o seu coração. Não há lugar para mais ninguém nem sequer para o irmão do qual não conhecemos o nome.

Não posso contar mais senão estrago a surpresa. Porque este livro é verdadeiramente surpreendente e perturbador. Perturbador porque mostra uma realidade desconhecida para a maioria dos leitores, perturbador porque a linguagem é crua, dura, violenta até em alguns momentos. Perturbador porque aquela escrita não parece ter saído do jovem sorridente que descobrimos na badana. Perturbador porque se percebe que o amor, mesmo o amor fraternal, pode ser obsessivo. Surpreendente porque por mais que o narrador vá dando pistas ao longo da história, nada nos prepara para o desenlace final.

Aqui fica um cheirinho:

"Nos primeiros tempos depois de conhecer a Luciana, ao regressar a casa, o Miguel atirava-se para os braços da minha mãe com entusiasmo de inocente. Corrida e salto em frente ao espelho da sala de jantar, enquando olhava para as costas da mãe reflectidas no espelho e metia a língua repleta de nervuras para fora. Babava-se sobre o cabelo que a minha mãe se esforçava por manter loiro. Adaptava a posição do corpo às zonas de maior visibilidade, por entre as manchas do espelho antigo. Chegava às cinco da tarde, e mal saía da carrinha branca com letras azuis da APPACDM, berrava para o nosso primeiro andar «O Miguel chegou!»"